terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Mulher - Objecto



Num mundo capitalista e cego à ética e à moral, descubro diariamente como a integridade física e social das pessoas é brutalmente colocada na sombra dos interesses económicos.

Vim morar para Lisboa, quis então procurar um part time para poder juntar algum dinheiro. Foi nesta busca que me deparei com uma página do Facebook chamada “Hospedeiras de Portugal”, tinha bom feedback, dizia-se que eram trabalhos esporádicos, alguns deles potencialmente divertidos, curtos e bem remunerados.  Demorei menos de cinco minutos a perceber que era tudo o que eu não queria fazer, contudo, a curiosidade era tanta perante tal monstruosidade que o meu scroll ininterrupto durou quase duas horas. O conceito é simples, trata-se de uma página onde empresas procuram pessoas para promoverem os seus produtos ou eventos. Tudo parece estar bem até que surge o primeiro post:

HOSPEDEIRAS (morenas) para ação de promoção de chá:

Dias 08 e 09 Dez (Sábado e Domingo)
10h às 19h – 9€/hora
Formação obrigatória dia 07 Dez – Lisboa – manhã

PD SINTRA

Excelente imagem - altura superior a 1,75mt - excelente poder de comunicação”



Nem todas as publicações têm este carácter tão estrito e superficial, contudo, muitas delas foram aparecendo no meu feed com o mesmo tipo de abordagem:



“Aveiro

Rapariga para mascote

Requisito: mínimo 1.70 de altura”



“Altura obrigatória: entre 1,68 e 1,72
Medidas roupa S ou XS”



Ainda que a oferta de trabalho fosse maioritariamente para mulheres, haviam algumas propostas para homens, mas neste caso, os pré-requisitos eram bem diferentes:



“Reforço de promotores com espírito comercial, pro atividade, boa disposição, gosto por objetivos”



Muitas perguntas foram surgindo na minha cabeça: Porque é que 80% das ofertas de trabalho são direcionadas apenas a mulheres? Porque é que os pré-requisitos para mulheres são maioritariamente de características físicas e não de habilidades enquanto que para os homens, os pré-requisitos baseiam-se apenas na capacidade que estes deverão ter para dar resposta à tarefa que estão prestes a desempenhar? Como é que uma mulher se sujeita a ser alvo de objetificação desta maneira concordando em trabalhar para empresas que claramente valorizam mais a sua imagem do que as suas capacidades? Desde quando é que a exposição de um corpo feminino passou a ser marketing para a venda de um produto que em nada lhe diz respeito. Como pode a estratégia de marketing ser tão fria ao ponto de usar um modelo de corpo feminino para atrair compradores em vez de utilizar seres humanos simplesmente aptos à tarefa de venda? Cheguei então à triste conclusão de que a mulher é claramente vista como uma boneca insuflável na indústria. Sem identidade, sem personalidade, sem habilidades, mas com umas boas pernas e um sorriso bonito, pronta para acenar por quem por ela passa enquanto abana o saquinho que traz a quinquagésima versão dos mesmos queijinhos frescos da marca x, desta vez com uma embalagem diferente. Um belo naco de carne, o instrumento de venda perfeito, dando a oportunidade a todos os consumidores atraídos por tal aparência de se aproximarem tendo em mente intenções que se afastam largamente do interesse de experimentar os tais queijinhos. A mulher está ali, em pleno supermercado, de salto alto, provavelmente bem desconfortável, adicionando mais alguns centímetros aos seus 170 que, por si só já se afastam significativamente da estatura média da mulher portuguesa que, embora tenha vindo a crescer significativamente nos últimos cem anos, ainda ronda os 162 centímetros.  Antagónico, não é? Os pré-requisitos físicos necessários nem correspondem à norma da mulher portuguesa. Assustou-me também o facto de as publicações serem feitas maioritariamente de mulheres para mulheres, também elas completamente alienadas e cegas, sem qualquer sentido ético no trabalho que desempenham. A falta de sensibilidade na forma como tratam seres humanos é alarmante. Uma mulher que não corresponda a todos os pré-requisitos impostos por tais empresas, poderá vir a sentir, que não vale por si mesma, ainda que de forma inconsciente, senti que ,para a indústria, as mulheres são um objeto meramente figurativo e de cariz sexual. E aquelas que não apresentem as características irrealistas consideradas de mulher-ideal são inválidas ao serviço. Será que no meu futuro, não terei um lugar para mim tão facilmente como uma mulher mais alta ou mais atraente que eu ou um homem independentemente das disparidades das nossas capacidades?

Continuamos assim a estimular a nossa cultura sexista, onde a mulher é usada como fonte de prazer e satisfação do homem e não é perspetivada como um ser independente com valor intrínseco. Enquanto este tipo de abordagem não for renunciada pelas mulheres e homens que fazem ou que propõem este tipo de trabalhos, não será possível observar evolução na perceção que os indivíduos têm sobre a mulher e o seu papel na sociedade. Pela igualdade de género e por um futuro mais promissor, não podemos aceitar tal abordagem com tanta normalidade. Por quanto tempo mais deixaremos este tipo de atividade neutralizada? Até quando se estenderá a alienação do ser humano relativamente a este tópico? Como pode a sede de gerar dinheiro ser mais importante que o respeito pelo ser humano? Desumano. A mulher, em montra, não é mais coisa nenhuma senão um mero objeto estético e sorridente com um saquinho cheio de queijinhos frescos. É triste.