Num mundo
capitalista e cego à ética e à moral, descubro diariamente como a integridade
física e social das pessoas é brutalmente colocada na sombra dos interesses
económicos.
Vim morar para
Lisboa, quis então procurar um part time
para poder juntar algum dinheiro. Foi nesta busca que me deparei com uma página
do Facebook chamada “Hospedeiras de
Portugal”, tinha bom feedback, dizia-se
que eram trabalhos esporádicos, alguns deles potencialmente divertidos, curtos
e bem remunerados. Demorei menos de
cinco minutos a perceber que era tudo o que eu não queria fazer, contudo, a
curiosidade era tanta perante tal monstruosidade que o meu scroll ininterrupto durou quase duas horas. O conceito é simples, trata-se
de uma página onde empresas procuram pessoas para promoverem os seus produtos
ou eventos. Tudo parece estar bem até que surge o primeiro post:
“HOSPEDEIRAS (morenas) para ação de promoção
de chá:
Dias 08 e 09 Dez (Sábado e Domingo)
10h às 19h – 9€/hora
Formação obrigatória dia 07 Dez – Lisboa – manhã
10h às 19h – 9€/hora
Formação obrigatória dia 07 Dez – Lisboa – manhã
PD SINTRA
Excelente imagem - altura superior a 1,75mt - excelente
poder de comunicação”
Nem todas as publicações têm este carácter
tão estrito e superficial, contudo, muitas delas foram aparecendo no meu feed
com o mesmo tipo de abordagem:
“Aveiro
Rapariga para mascote
Requisito: mínimo 1.70 de altura”
“Altura obrigatória: entre 1,68 e 1,72
Medidas roupa S ou XS”
Medidas roupa S ou XS”
Ainda que a oferta de trabalho fosse
maioritariamente para mulheres, haviam algumas propostas para homens, mas neste
caso, os pré-requisitos eram bem diferentes:
“Reforço de promotores com espírito comercial, pro
atividade, boa disposição, gosto por objetivos”
Muitas perguntas foram surgindo na minha
cabeça: Porque é que 80% das ofertas de trabalho são direcionadas apenas a
mulheres? Porque é que os pré-requisitos para mulheres são maioritariamente de
características físicas e não de habilidades enquanto que para os homens, os pré-requisitos
baseiam-se apenas na capacidade que estes deverão ter para dar resposta à
tarefa que estão prestes a desempenhar? Como é que uma mulher se sujeita a ser
alvo de objetificação desta maneira concordando em trabalhar para empresas que claramente
valorizam mais a sua imagem do que as suas capacidades? Desde quando é que a
exposição de um corpo feminino passou a ser marketing para a venda de um
produto que em nada lhe diz respeito. Como pode a estratégia de marketing ser
tão fria ao ponto de usar um modelo de corpo feminino para atrair compradores
em vez de utilizar seres humanos simplesmente aptos à tarefa de venda? Cheguei
então à triste conclusão de que a mulher é claramente vista como uma boneca
insuflável na indústria. Sem identidade, sem personalidade, sem habilidades,
mas com umas boas pernas e um sorriso bonito, pronta para acenar por quem por
ela passa enquanto abana o saquinho que traz a quinquagésima versão dos mesmos queijinhos
frescos da marca x, desta vez com uma embalagem diferente. Um belo naco de
carne, o instrumento de venda perfeito, dando a oportunidade a todos os
consumidores atraídos por tal aparência de se aproximarem tendo em mente
intenções que se afastam largamente do interesse de experimentar os tais queijinhos.
A mulher está ali, em pleno supermercado, de salto alto, provavelmente bem
desconfortável, adicionando mais alguns centímetros aos seus 170 que, por si só
já se afastam significativamente da estatura média da mulher portuguesa que,
embora tenha vindo a crescer significativamente nos últimos cem anos, ainda ronda
os 162 centímetros. Antagónico, não é?
Os pré-requisitos físicos necessários nem correspondem à norma da mulher
portuguesa. Assustou-me também o facto de as publicações serem feitas
maioritariamente de mulheres para mulheres, também elas completamente alienadas
e cegas, sem qualquer sentido ético no trabalho que desempenham. A falta de
sensibilidade na forma como tratam seres humanos é alarmante. Uma mulher que
não corresponda a todos os pré-requisitos impostos por tais empresas, poderá
vir a sentir, que não vale por si mesma, ainda que de forma inconsciente, senti
que ,para a indústria, as mulheres são um objeto meramente figurativo e de
cariz sexual. E aquelas que não apresentem as características irrealistas consideradas
de mulher-ideal são inválidas ao serviço. Será que no meu futuro, não terei um
lugar para mim tão facilmente como uma mulher mais alta ou mais atraente que eu
ou um homem independentemente das disparidades das nossas capacidades?
Continuamos assim a estimular a nossa
cultura sexista, onde a mulher é usada como fonte de prazer e satisfação do
homem e não é perspetivada como um ser independente com valor intrínseco.
Enquanto este tipo de abordagem não for renunciada pelas mulheres e homens que
fazem ou que propõem este tipo de trabalhos, não será possível observar
evolução na perceção que os indivíduos têm sobre a mulher e o seu papel na
sociedade. Pela igualdade de género e por um futuro mais promissor, não podemos
aceitar tal abordagem com tanta normalidade. Por quanto tempo mais deixaremos
este tipo de atividade neutralizada? Até quando se estenderá a alienação do ser
humano relativamente a este tópico? Como pode a sede de gerar dinheiro ser mais
importante que o respeito pelo ser humano? Desumano. A mulher, em montra, não é
mais coisa nenhuma senão um mero objeto estético e sorridente com um saquinho
cheio de queijinhos frescos. É triste.