terça-feira, 3 de janeiro de 2023

À volta de uma mesa

 A alimentação é um processo vital na vida do ser humano. Não tenho um extenso conhecimento daquilo a que chamamos Pré-História; no entanto, penso que é facilmente aceite se afirmar que por diversas situações intuitivas e pela transmissão de conhecimento de geração em geração ao longo da nossa História, o ser humano foi aprendendo aquilo que pode ou não ingerir. Além disso, a determinado momento aprendemos algo que mudou para sempre o modo como nos alimentamos: o cozinhar. A primeira evidência do ser humano cozinhar os alimentos data de cerca de 800,000 anos[1], apesar de ser possível ter começado antes. Como vimos numa das primeiras aulas da UC Cultura Visual, Lévi-Strauss considera o ato de cozinhar um elemento distintivo dos seres culturais: a culinária é uma manifestação extraordinária de arbitrariedade cultural. Mais distintivo ainda será a prática generalizada de, na grande maioria das sociedades atuais, ocidentais ou orientais, nos reunirmos à volta da mesa.

Contudo, aquilo que se pode observar nos nossos dias é uma desvalorização e, porventura, uma dessacralização do momento da refeição. Na correria do dia-a-dia, é comum tomarmos o pequeno-almoço sozinhos, almoçarmos sozinhos, lancharmos sozinhos, jantarmos sozinhos. E a solidão é um sintoma de como levamos a nossa vida. Tomamos o pequeno-almoço “a despachar” porque adormecemos e não podemos chegar atrasados à escola/faculdade/trabalho/outro; a meio das nossas atividades matinais, podemos comer umas bolachas, algo que nos tire a sensação de fome até à hora do almoço. Almoçamos acompanhados de amigos ou colegas, muitas vezes por uma questão de conveniência, isto é, porque são aqueles que, naquele determinado período da nossa vida, estão no mesmo contexto espacial que nós. Ainda assim, também não são raras as vezes que colegas de um mesmo trabalho almoçam cada um no seu canto. O lanche é semelhante às bolachas do meio da manhã e tantas vezes acontece ao mesmo tempo que trabalhamos. Ao final do dia, jantamos “em família”, o que significa que cada um janta quando tem fome e em tempos diferentes, devido aos diferentes horários dos elementos da família.

Inconsciente e paulatinamente, temos vindo a perder uma dimensão que é, na minha opinião, essencial: a comensalidade. Comensal é uma palavra que nos chega do latim commensalis[2], constituída por cum (= com) e mensa (= mesa). Comensalidade é, assim, a ação de se alimentar habitualmente à mesma mesa. Comensalidade refere-se não somente ao ato de comer e o que se come, mas ao modo como se come. A comensalidade reflete um momento em que partilhamos aquilo que nos permite continuar a viver, isto é, os alimentos. Ou seja, ao nos reunirmos em volta de uma mesma mesa (sendo já essa uma atitude arbitrária), estamos a partilhar aquilo que é vital para nós. Ainda assim, a comensalidade manifesta que aquilo que é vital ao ser humano não é só o alimento que tomamos, mas também o caráter social do ser humano. Por isso, o momento da refeição é um momento privilegiado de partilha, propício à socialização, ao desenvolvimento das nossas relações sociais, sejam elas relações familiares, de amizade, de trabalho, etc. A refeição é um momento em que colocamos aquilo que temos à disposição do outro; é um momento que contraria o egoísmo em que tantas vezes caímos.

É impressionante como retirar o sentido comunitário de algo tão importante como a alimentação pode trazer tantas consequências a uma sociedade. A refeição é um momento fundamental na construção de identidade, no qual todos estão ao mesmo nível ao juntar-se à volta da mesma mesa. Guardar o momento da refeição como se guarda algo sagrado é construir identidade, é construir comunidade, é contrariar o ritmo imparável dos nossos dias, é contrariar a fugacidade, é fazer durar um momento, é guardar a família, é colocar em comum aquilo que temos e somos, é partilhar a vida. Desprezar a comensalidade é um ataque à família enquanto núcleo da sociedade; por sua vez, atacar a família é desprezar a comensalidade. Mas esse seria tema para outro texto: o que é a família?