Disse Jesus:
“pois vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem compreender.
Cumpre-se neles a profecia de Isaías, que diz:
«Ouvindo, ouvireis, mas não
compreendereis; e, vendo, vereis, mas não percebereis. Porque o coração deste
povo tornou-se duro, e duros também os seus ouvidos; fecharam os olhos, não
fossem ver com os olhos, ouvir com os ouvidos, compreender com o coração, e
converterem-se para Eu os curar».” (Mt 13, 13b-15)
Recentemente, tive de ler para a
unidade curricular de Estudos de Pintura o livro “Século de Ouro: Da República
Fiorentina ao Pós-readymade (O Manual)”. Neste, o professor Carlos Vidal faz
uma análise da preponderância do sentido da visão em várias épocas a partir de
Giotto, relacionando-a com os diferentes movimentos artísticos. De facto,
impressionou-me conhecer como a cultura ocidental é maioritariamente
ocularcêntrica, isto é, a visão ocupa o primeiro lugar em relação aos outros
sentidos. Nesse livro, é também referida a “Carta sobre os cegos para uso
daqueles que vêem”, um texto de Diderot em que este reflete sobre a experiência
da cegueira.
Essa carta conduziu-me, por sua vez,
às primeiras aulas de Cultura Visual, em que abordámos a arbitrariedade da
linguagem, fazendo corresponder sons a ideias. A determinado momento, o cego de
nascença de Puisaux afirma que quem o examina deveria ficar surpreendido não só
com aquilo que ele é capaz de fazer, mas com o facto de ele ter a capacidade da
fala. Isto porque tudo aquilo que um cego de nascença conhece, conhece-o
através do tato e da descrição dos que vêem, e não da visão, não podendo assim
associar uma palavra a um objeto visível, mas apenas à memória háptica que
reteve ao tocar num objeto. Diderot resume esta ideia de um modo esclarecedor,
sintetizando simultaneamente a questão da arbitrariedade da linguagem:
Nós não chegamos a ligar uma ideia a uma
porção de termos que não podem ser representados por objetos sensíveis, e que,
por assim dizer, não possuem corpo, a não ser por uma série de combinações
sutis e profundas das analogias que notamos entre esses objetos não sensíveis e
as ideias que eles excitam; e cumpre confessar consequentemente que um cego de
nascença deve aprender a falar mais dificilmente do que um outro, porquanto,
sendo muito maior para ele o número de objetos não sensíveis, dispõe de muito
menos campo do que nós para comparar e combinar.
Ora, sobretudo após Descartes, o
conhecimento é genericamente associado ao sentido da visão. No entanto, e
também através deste caso prático de Diderot, compreendemos que o verdadeiro
conhecimento ultrapassa qualquer um dos sentidos – um cego, apesar de não ter
os benefícios da visão, desenvolve os outros sentidos mais do que aqueles que
vêem; um surdo, apesar de não ter os benefícios da audição, desenvolve os
outros sentidos mais do que aqueles que ouvem. Aliás, na citação bíblica
inicial (também citada no livro de Carlos Vidal), Jesus diz isso mesmo:
possuímos os sentidos e as suas potencialidades, mas isso não significa que a
nossa perceção da vida seja completa, que o nosso conhecimento da verdade seja perfeito.
Vivemos tempos de confusão e de
incertezas, tempos dominados pelo capitalismo, pelas ideologias, pelo ataque à
família, pela destruição da identidade, pela tentativa do cancelamento da
história. Vivemos tempos em que muitas vezes o mais apetecível é fechar os
olhos e fingir que não vemos. Vivemos tempos em que muitos são aqueles que vêem
sem ver, que ouvem sem ouvir. Muitos são os feridos e as feridas endurecem o
coração se não forem curadas. E o coração endurecido endurece os ouvidos e
fecha os olhos. E os ouvidos endurecidos e os olhos fechados endurecem o
coração. E, com o coração endurecido, tantas vezes nos afastamos da verdade,
daquilo que podemos ver sem ver, daquilo que podemos ouvir sem ouvir, daquilo
que quase podíamos compreender.