Mulholland Drive é um filme de David Lynch, lançado em 2001, conhecido pelo seu cariz surrealista e pelo seu enredo indecifrável. Há cerca de um mês visualizei-o no grupo de cinema da faculdade (CineFbaul), que promovo juntamente com outros colegas, e não foi de espantar que este tenha trazido muitas pessoas à sessão.
Para mim, aquilo que se mostrou mais avassalador em Mulholland Drive (sendo que
este foi o primeiro filme do David Lynch que vi) foi a maneira como afirma o
cinema enquanto construção teatral e onírica. O encadeamento das imagens que
compõem o filme, os shots demorados e os diálogos desfasados alternados por
cenas de aparente “normalidade” fazem persistir uma impressão de desconforto,
tudo é real e, simultaneamente, tudo é possível. A “suspensão temporária da
realidade” funciona como que de modo inverso, sabemos que tudo é possível, não
porque acreditamos naquele universo cinematográfico como um universo cujas
premissas são verdadeiras, mas sim porque o próprio filme se nos apresenta como
um sonho (a cena antes dos créditos iniciais onde vemos uma cama indica-nos que
alguém dorme, não sabemos se nós, se uma das personagens). Assistimos à sua
projeção como se de uma janela para dentro do nosso próprio inconsciente se
tratasse, o aperfeiçoamento da transposição do sonho para o ecrã revela-se
aterrorizadora, como, por exemplo, na cena em que dois homens discutem o sonho
de um deles num diner e, de seguida, o sonho acontece. Compreendemos que não há
lei do mundo real que nos possa proteger, estamos expostos ao absurdismo
violento do subconsciente e, ao afastarmos os olhos do ecrã, perguntamo-nos se
o mesmo não se dará com aquilo que nos rodeia.
Por outro lado, à semelhança de Persona (1966), duas mulheres surgem como
espelhos uma da outra, e vão se progressivamente fundindo. O papel da atriz é o
da máscara, da construção. O “eu” que se desdobra em múltiplos, a película que
fixa imagens como que inconscientes, para logo de seguida as destruir e anular.
O filme, que retrata Hollywood e os esquemas da indústria, expõe constantemente
os seus mecanismos de fabricação da imagem, à maneira da alienação brechtiana.
Quando Rita e Betty se dirigem a um clube noturno é lhes apresentado onde um
apresentador fala por cima de uma gravação de uma banda de jazz, e repete “No
hay banda”. Não há banda, mas ouvimos uma banda, de seguida entra uma cantora,
emociona o público com a sua atuação, mas a meio desmaia e a canção continua,
era na verdade playback. Somos sacudidos por esta revelação, de que tanto o
espetáculo dentro do filme como o próprio filme é só uma construção.
Assim, Mulholland Drive é um filme que nos agita na sua constatação da fluidez
da realidade. Aquilo que se afirma verdadeiro é apenas fabricação (o cinema),
aquilo que se mostra uno pode ser fragmentado (a identidade) e aquilo que se
considera absurdo pode ser plausível (o sonho).