Tenho pensado sobre corpos, tanto físicos como intangíveis. Marx uma vez delineou o que chamamos de "alienação" em relação à esfera do trabalho, mas será possível tornarmo-nos alienados do nosso próprio corpo? O nosso instrumento que o faz acontecer divorcia-se de significado e de propósito, talvez com o mesmo objetivo mas certamente com o mesmo resultado: a distância entre o que existe independentemente do que faz, e o que está em movimento e em função de algo. E a preferência pelo último.
O
exemplo mais claro para mim, embora talvez excessivamente literal, é a
valorização da 'conquista' sexual em certas esferas culturais. Talvez
numa tentativa de quebrar com valores permeantes (julgados antiquados)
de castidade, pudor e repressão sexual, nasceram correntes de competição
aberta e glorificação da quantidade de parceiros sexuais de um
indivíduo, quer correntes ou não. Existem independentemente de género,
embora a linguagem possa variar. No entanto, o objetivo é o mesmo:
quantos mais parceiros tens (literal ou potencialmente ao teu alcance),
mais reconhecimento e admiração podes receber dos teus círculos sociais.
Por vezes tem a designação de body count (contagem de corpos) em
círculos contemporâneos, mas devo pronunciar que esta competição sempre
existiu de certa forma, inscrita no pensamento do machismo, por
exemplo.
Creio
que esta linha de pensamento é muito pervasiva e pode ter consequências
inesperadas até para quem não subscreve conscientemente a esta lógica.
Vemos, desde já, um protagonismo da quantidade de relações sexuais, o
que pode levar ao esquecimento da qualidade destas. No entanto, nem
sempre esta consequência se verifica - afinal, será que a qualidade da
experiência requer necessariamente o mesmo parceiro? Pode muito bem ser
que a continuidade de um só parceiro leve a uma estagnação e declínio de
satisfação, por exemplo.
Talvez uma consequência mais notória seja a mudança de mentalidade quanto ao sexo no geral - o que chamamos de uma mentalidade de objetivos que derruba a da experiência. O propósito do sexo sobre esta lógica 'de objetivos' torna-se circular; é o seu próprio objetivo, e o objetivo é tê-lo (e potencialmente, chegar ao orgasmo quando se o tem, independentemente de como lá se chega), sem consideração pelos meios tomados para lá chegar. Não precisamos de imaginar as implicações desta lógica, pois são reais mesmo no pior dos casos, de coerção ao abuso sexual. Ela opera sobre uma das condições que cria a alienação - tal como o trabalho torna-se um objeto a realizar e que se possui, o sexo também.
Mas talvez a consequência mais insidiosa para mim seja a forma de como indícios desta alienação sobre a vida sexual podem infiltrar o nosso psicológico. Queremos distanciarmo-nos de um modelo de sexualidade que fomenta vergonha por termos desejos de todo, mas podemos acabar noutro modelo que perpetua vergonha de outra forma - a vergonha de ter desejos e não os realizar. Acho a solução individual simples de dizer e difícil de executar: encontrar um ponto intermédio que faça sentido para nós, sabendo que o sítio do intermédio nessa escala pode alterar-se ao longo do tempo. Qual é o propósito da nossa vida sexual que combate o apego ao ato por si só? Será ele o aprofundamento dos nossos laços sociais ou românticos, a descoberta do nosso mundo interior pelo que nos traz prazer, ou outro qualquer?
É difícil dizer se podemos reproduzir esta estratégia a um nível cultural, mas creio que vale a pena o esforço.