É estranho como as normas sociais, muitas vezes invisíveis,
nos moldam constantemente sem que percebamos. Desde o momento em que acordamos
até ao instante em que voltamos a dormir, estamos a ser guiados por regras que,
na maioria das vezes, nem sequer questionamos. Essa espécie de
"poder" que regula as nossas ações diárias é, na visão de Michel
Foucault, uma verdadeira microfísica do poder, ou seja, um poder que não vem de
cima, mas sim de dentro, intervindo com os detalhes da nossa vida. Se pararmos
para pensar, esse controlo não acontece apenas em grandes instituições, como o
governo ou a escola, mas nas pequenas coisas: no que vestimos, no que comemos,
no que publicamos nas redes sociais. E essa imposição de normas está, muitas
vezes, ligada a questões de género.
Foucault falava sobre como o poder se disfarça, muitas
vezes, em pequenas ações e comportamentos que são aceites como
"naturais", mas que na verdade são formas de controlo. Quando vejo as
fotos que circulam nas redes sociais, por exemplo, questiono-me: será que estou
realmente a expressar-me como sou ou estou apenas a cumprir um papel moldado
por expectativas externas? As mulheres, principalmente, estão constantemente a ser
vigiadas e, de certa forma, presas a padrões de beleza e comportamento, como
Simone de Beauvoir nos lembrou em "O Segundo Sexo".
Para Beauvoir, as mulheres são vistas como "o outro", o que significa
que são definidas em relação ao homem, como uma versão secundária e inferior.
Isso está tão entranhado na sociedade que, muitas vezes, nem nos apercebemos do
impacto que isso causa nas nossas vidas.
Numa simples ida ao supermercado, por exemplo, podemos ver
como a sociedade ainda impõe regras sobre o que é considerado “adequado” para
homens e mulheres. Os produtos de beleza e os produtos de cuidado pessoal são
muito mais visíveis e destacados para as mulheres, enquanto os homens são
apresentados a cosméticos com um tom mais neutro e sem tantos apelos. Por que
será que o corpo feminino é constantemente regulado, analisado e “melhorado”? A
resposta, como Foucault diria, está no bio poder, um poder invisível que não só
regula o comportamento das pessoas, mas também o corpo. A procura por um corpo
perfeito, a pressão para seguir padrões de beleza, ou até mesmo a simples
expectativa de que as mulheres sejam sempre cuidadosas com a sua aparência, são
formas de controlo que ainda são profundamente enraizadas na nossa sociedade.
Isso não quer dizer que os homens estejam completamente livres
disto. A pressão sobre a masculinidade também é evidente, mas, de maneira
geral, a sociedade tende a ser mais permissiva quando se trata da aparência e
do comportamento dos mesmos. Mesmo assim, é inegável que a presença constante
de padrões de género e a vigilância sobre os corpos revelam uma verdade: o
poder está, de facto, nas pequenas coisas. E, como Beauvoir diria, é isso que
nos impede de sermos livres. O homem, muitas vezes, é visto como a norma, o
modelo a ser seguido, enquanto a mulher é relegada à posição de
"outro". Essa dinâmica ainda é vista em muitas áreas da nossa vida
social, desde a forma como escolhemos a roupa para um encontro até à maneira
como nos comportamos em espaços públicos.
Talvez a resistência a esse poder comece no simples gesto de
reconhecer essas normas e decidir conscientemente que não temos de lhes
obedecer. A verdadeira liberdade está em questionar o que nos é imposto e tentar
encontrar uma forma de ser autêntico, sem deixar que as expectativas de género
nos definam. Foucault e Beauvoir oferecem-nos um caminho para isso: entender
como o poder opera nas pequenas coisas e como podemos, através da reflexão e da
ação, resistir a essas normas. Isso não significa que temos de rejeitar
completamente as regras, mas sim de estar ciente das mesmas, e, quando
necessário, subvertê-las.
Se eu pudesse tirar uma lição de tudo isto, seria que a
liberdade não vem de seguir ou de se conformar com os padrões estabelecidos,
mas de ser capaz de ver o poder por detrás dessas regras e escolher, de forma
consciente, como reagir. Afinal, a verdadeira resistência não está na revolução
grandiosa, mas nas pequenas ações do dia a dia, nas escolhas que fazemos e nas
imagens que decidimos construir de nós mesmos. O poder está em todas essas
pequenas coisas, mas também está em nós a capacidade de questioná-las e, quem
sabe, transformá-las.