sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

OBSERVA-(te)-(me)-(nos)

Estou atrasada, corro que nem uma louca, chego ofegante ao autocarro, cumprimento o condutor, sento-me e observo. Nada mais nada menos que a minha nova rotina repleta de responsabilidades, às quais tento esquivar-me. Mas eu sou nova, digo eu. 
Aposto que esta senhora que acabou de entrar no autocarro, perto dos seus quarenta anos, que pensa o mesmo..., que sou nova, que desejava voltar a ser tão nova, já fez o mesmo que eu. Agora, passado uma carreira a chegar aos quê? 20 anos, não se deu ao trabalho de cumprimentar o condutor do autocarro que apanha todos os dias, à mesma hora. 
Aquele senhor parece feliz. Cansado, mas feliz. Se calhar é do sono, eu também estou com sono. Pressupor que, ele faz o que gosta e está cansado porque, efetivamente, se dedica a algo para o qual trabalha todos os dias, deixou-me feliz. Ainda para mais cumprimentou o condutor.
E estas senhoras idosas que chegam aqui e parece que o autocarro é a casa delas? Conhecem o condutor, falam com ele como se o tivessem visto nascer, metem-se com toda a gente. Vergonha de falar com estranhos? Não lhes toca. Ter a atenção de nós, pessoas que vamos no autocarro, que nunca nos vimos, ou que nos vimos sempre, é para o que elas vivem. Quando ultrapassam os limites, os meus limites, sim (hei-de fazer uma lista com eles), aqueles que ninguém pode ultrapassar de manhã e aqueles que ninguém pode ultrapassar à tarde, ou sempre, é que a coisa podia complicar. Algo do tipo, estou sentada, há um lugar do outro lado mas fazem-se de coitadinhas e têm que ter o meu lugar. Por favor, isso é abusar da sua imagem de ex-trabalhadora árdua que fez tudo pelos seus filhos, que participou no 25 de abril, que lutou por direitos e que agora, por tudo o que passou, querer um desconto. Não há cá descontos, ou não haveria, se eu não fosse alguém decente a quem custasse andar a discutir por uma coisa tão estúpida como um assento dum autocarro (ainda que não deixe de ser um incómodo), mas há quem o faça, quem discuta.
Eu percebo, é o stress, o trabalho consome-nos, a rotina consome-nos, as pessoas consomem-nos, tudo nos consome e há que explodir. Imaginem ter uma carreira com quase 20 anos, sempre a fazer a mesma coisa, sem valorização alguma. Quer dizer, estudamos, temos ambição, e de repente as trocas voltam-se e quem comanda na nossa vida é o trabalho e não nós? Não se vive, vive-se a fazer-se por viver. 
E imaginem novamente, fazer parte dum movimento, de um certo tipo de resistência, de algo em que se acredita, de algo que motiva, de algo que se interpreta como "nosso" e de repente "ah, dá cá" *puff* alguém nos tirou isso, banalizou isso, ridicularizou isso. Algo que pedia a mudança agora tornou-se meramente banal, um "uau tenho que ser assim, tenho que ter isso, tenho que fazer isso", mais um "ai que giro" da sociedade. Passar por tudo isto, vá quer dizer, pede um desconto, às vezes não cumprimentar o condutor, pronto, até é justificável, mas sempre não.
E ter consciência que somos manipulados e não fazermos nada para mudar isso? Uau então, és um ser humano, supostamente livre, e deixas-te dominar pelas massificações, os media, o marketing e todas as segmentações a que ficas sujeito? Grande vida sim senhor. "Eu sei que isto são tudo estratégias de marketing" diz alguém supostamente consciente enquanto pega da prateleira do supermercado o desodorizante direccionado para o seu género... quer dizer, então cmon guys, uns cheiros são masculinos e outros são femininos, as axilas dos homens têm mais pêlos, precisam dum cheiro mais intenso, coitados, eles não têm culpa de não serem pressionados pela sociedade a fazer a depilação.... ups, outro tópico. Outro assunto, outro tema, outra injustiça, outra coisa marada que nos consome e que nós não conseguimos travar.
Somos uma sociedade, há que haver respeito, cooperação e compreensão, mas também precisamos de bater o pé, de dizer que não, de exigir que não.
E eu digo NÃO, ESTOU FARTA, toda a gente tem problemas, mas neste momento, neste autocarro, no anterior e no próximo, QUERO QUE CUMPRIMENTEM O CONDUTOR, sei lá, um bom dia/boa tarde/boa noite, um sorriso, um olhar carinhoso. Já pararam para pensar que a rotina dum condutor é fazer a nossa rotina acontecer? Se não viesses neste autocarro vinhas como? a pé? todos os dias? Imagina o cansaço que sentes agora, a quadruplicar. Pois bem, há que agradecer a alguém, ele é um igual... ele também trabalha para outros, todos nós. 
Não quero ser hipócrita, também já me senti tentada a nem sequer dizer nada ao condutor (principalmente quando estão com aquela cara de touro mal humorado), quer dizer, eu já o fiz de certeza, mas ao menos penso nisso, tenho a consciência disso, reflito sobre isso.



Cheguei ao meu destino, gostei deste momento, é a parte favorita dos meus dias cansativos.
Sei que amanhã..... novamente atrasada. Corro que nem uma louca para o comboio, o autocarro, o metro, o que quer que seja nessa manhã. Sento-me e Observo.