Quero começar esta publicação por resumir uma história que me foi contada recentemente por uma amiga de 69 anos. Está a tirar um curso nesta Faculdade, é minha colega de turma, e provavelmente a colega de turma mais velha que alguma vez tive e terei. O facto de a ter como colega foi e continua a ser uma maravilhosa forma de aprender conhecimentos e pontos de vista diversos, o que normalmente (na minha geração) se aprenderia com uma avó ou uma professora neste caso é com uma amiga e isso muda a forma como processo as conversas.
A história foi contada num contexto de conversa que estava a acontecer na sala, ela considerou a nossa geração uma geração "banana", e contou uma história de como, com 14 anos, teve de lutar para que pudesse ter contacto com os rapazes na escola, uma vez que, na altura dela os rapazes estavam separados das raparigas e não podia haver qualquer interação no recreio. Ela não achava correto e por isso interrompia as aulas de outros professores (que lecionavam a turmas de rapazes) dizendo "Peço desculpa interromper a sua aula Sr. Professor mas tenho uns recados para dar aos rapazes, visto que, não tenho oportunidade de falar com eles no recreio" e lá dava os recados que tinha a dizer . Esta foi uma de muitas histórias que me contou , e fez-me pensar que, pelo que leio, vejo e me contam, a geração do 25 de abril, a que passou pelo austero Estado Novo, lutou, e muito pelos direitos mais simples que hoje nos são garantidos desde que nascemos. Como nos foi garantido o direito sem sabermos o que é lutar por ele não existe uma valorização do que se tem, nem a consciência de que, o que nos é permitido expressar hoje foi graças à revolução das antigas gerações.
No mundo da arte, se formos aplicar este modo de pensar e análise, as melhores e mais intensas obras de arte foram obras de revolução, de crítica político-social. A maior parte dos artistas criaram as suas melhores obras nos tempos da censura, atrevo-me a dizer que provavelmente a arte com mais alma tenha sido produzida nos tempos de revolta.
Na industria da música tomemos como exemplo Os Beatles cujas músicas acompanharam um movimento hippie, contra a guerra do Vietnam e qualquer tipo de violência. No brasil Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque entre outros, que lutavam contra a censura que estava a acontecer no seu país e em Portugal o José Afonso, José Mario Branco , Sérgio Godinho e Fausto músicos muito censurados e que tiveram um importante papel político e cultural na resistência durante os anos do fascismo e no processo revolucionário iniciado com o 25 de abril de 1974. São todos autores de musica sobreviventes da leva de cantautores feitos ainda no Estado Novo. Na Pintura portuguesa temos os nomes dos maiores pintores portugueses como o José Almada Negreiros, Julio Pomar e outros.
Todo este percurso trouxe-nos até aos dias de hoje, como diria José Mario branco, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, houve uma evolução extraordinária em vários aspetos, "conseguiu-se" uma liberdade de expressão, de escolhas, de liberdade em si. Porém, caiu-se numa desvalorização do que se tem e numa sobrevalorização do que não se tem. No caso do surgimento da internet e a massificação da imagem, somos bombardeados com imagens, obras e pinturas de todo o mundo o que não ajuda os futuros artistas ( seja na área da pintura, música ou literatura e.t.c) na criação, na criatividade e originalidade, levando a uma perda de autoridade artística. "quando se olha para obras de certos artistas, como alguns que já referi, percebe-se que têm uma obra absolutamente singular. São deles, goste-se ou não. Em algumas exposições colectivas de hoje, analisamos as obras e parece tudo do mesmo artista. Sinto que isto é do sistema: a arte contemporânea caiu nisto, configurou-se numa produção sem nome ou assinatura " (1)
O conforto à partida, é sempre desejável, temos como exemplo o surgimento de imensos utensílios electrónicos, o telemóvel, as televisões, as máquina de lavar e.t.c porque a evolução da sociedade assim o pede, no entanto isso não significa que não tenha as suas consequências. As vanguardas artísticas normalmente são revoltas contra o movimento anterior, como um ciclo no percurso da arte, o movimento seguinte é sempre uma procura de rotura do movimento anterior para combater esse mesmo conforto e monotonia estética do homem. A meu ver, é necessário o desconforto para que exista a criação, seja ele um desconforto sobre o que se vê ou um desconforto sobre o que sente. O desconforto vem da necessidade de querer a mudança, ao assumir uma posição passiva e conformada sobre a realidade motiva-se a estagnação.
(1) Sarmento, Julião & Faro. Pedro & Matos. Sara António, (2016), O Artista Como Ele É, Lisboa: Sistema solar.