sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A fuga da Mona Lisa

No verão passado visitei a cidade de Paris. Percorri a capital francesa visitando monumentos históricos e passeando pelos inumeráveis jardins, como o das Tulherias, onde imaginei que Roland Barthes e Simone de Beauvoir terão também passeado. Não pude deixar de ir ao Louvre, o maior museu do mundo, onde estão milhares de pinturas e esculturas da Vénus de Milo da Antiga Grécia, A Liberdade Guiando o Povo de Delacroix, As Bodas de Caná de Veronese, à célebre Mona Lisa de Leonardo Da Vinci.

Não me surpreendi com o facto de só conseguir observar esta última pintura a mais de dez metros de distância, todos eles percorridos por pessoas preocupadas em tirar a melhorar fotografia à obra. O produto final acaba por ser uma imagem na galeria dos telemóveis, igual ou pior a tantas outras espalhadas por toda a internet, para talvez uma posterior publicação numa das redes sociais. Ambiciona-se visibilidade e reconhecimento. Estes são alcançados com a publicação da fotografia tirada, através de visualizações, “likes” e comentários dos “seguidores”. Há um estímulo para o desenvolvimento da expressão do narcisismo. O significado distancia-se da pintura a óleo e recai na nossa própria imagem. Na verdade, naquele dia no museu do Louvre, poucos eram os que contemplavam verdadeiramente a Mona Lisa.

Em Ways of Seeing (1972), Berger expõe que uma linguagem de palavras e imagens chama-nos para onde quer que andemos, o que quer que leiamos e quem quer que sejamos. Estas imagens perseguem-nos para todo o lado, assombram os nossos sonhos. As imagens supõem um fim que se liga ao mundo e às suas constantes mutações. Há uma virtualização das imagens pelas redes sociais, uma transfiguração imagética, cujas origens remontam a uma fase onde a pintura a óleo se impõe primordial no mercado, ocupando as salas do mundo ocidental, até aos dias que correm atualmente, onde as imagens e toda a arte nos assome, sem que sejam remetidas para uma memória ou lugar específicos.

A arte nunca foi tão acessível a todos como hoje em dia. As incontáveis possibilidades de compra de arte e a proximidade do seu artista com o público tornaram possível esta acessibilidade, não só pela sua disponibilidade no mercado, como pela facilidade comercial em comparar preços, definir as melhores opções de mercado ou mesmo negociar com o próprio artista em questão. Deixou de haver uma singularidade de cada pintura no lugar único onde reside. Numa sociedade de consumo como a que vivemos, a Mona Lisa saiu do Louvre e foi multiplicar-se numa imagem onde pode ser um produto de uma publicidade, onde aparece numa capa de telemóvel, numa camisola, entre muitos outros e é assim diminuída pela sua reprodutibilidade. Os anos em que vivemos nunca foram tão propícios para a disseminação e aquisição de cultura. Em anos passados, as obras de arte repousavam em espaços de grande autoridade enquanto nos dias de hoje são replicadas em dezenas de formas e para os mais diversos lugares. Ainda que estejamos perante uma acessibilidade da arte cada vez maior estamos também a assistir a uma deterioração da mesma, porque a arte está cada vez mais a servir a publicidade com a finalidade exclusiva de vender.

 

Publicity turns consumption into a substitute for democracy. The choice of what one eats (or wears or drives) takes the place of significant political choice. Publicity helps to mask and compensate for all that is undemocratic within society. And it also masks what is happening in the rest of the world. Publicity adds up to a kind of philosophical system. It explains everything in its own terms. It interprets the world. The entire world becomes a setting for the fulfillment of publicity's promise of the good life. The world smiles at us. It offers itself to us. (Berger, 1972).

Somos assolados por imagens publicitárias que estimulam a imaginação e que pretendem interpretar o mundo à nossa volta e explicar tudo nos seus próprios termos. Vivemos numa sociedade onde nunca observámos tão pouco e onde nos contentamos em apenas sermos vistos.