terça-feira, 21 de novembro de 2023

O BeReal e a quimera da autenticidade online

 

  Pling”. Toda a gente se cala e agarra o telemóvel. “Hora do BeReal!” Os braços esticam-se para a frente, uma espécie de selfie sticks humanos, ou de braços selfie stickianos. Todos congelam durante vários segundos. As fotos publicadas mostram os outros a tirarem as suas fotos. São tempos estranhos que vivemos. É preciso que seja uma máquina a ordenar-nos que captemos um momento espontâneo e natural da vida humana, interrompendo-o e interpondo-se à própria espontaneidade e naturalidade do momento. Será que as coisas que fazemos e que vivemos, têm menos valor se não forem publicadas na internet?

 O BeReal é “a primeira plataforma espontânea e imprevisível” de partilha de fotografias, procurando opor-se a redes sociais como o Instagram, onde o conteúdo é muitas vezes retocado ou editado, e todos aparentam ter vidas ocupadas e perfeitas.

 O conceito inovador da aplicação é que uma vez por dia, a uma hora aleatória, todos os utilizadores recebem (ao mesmo tempo) uma notificação para tirarem uma foto e a publicarem dentro de um máximo de dois minutos. Ao premir o botão de disparo, são tiradas duas fotografias praticamente em simultâneo: uma através da câmara frontal (uma selfie) e outra através da câmara traseira, que revela o espaço em que a pessoa se encontra.


  

  Assim, esta plataforma permite que os seus utilizadores partilhem com os seus amigos momentos “autênticos”, não planeados nem editados, mostrando um lado “real” e “espontâneo” da vida de cada um. O slogan da plataforma é “Your friends for Real" (“os teus amigos a sério”) e garante ser “uma maneira nova e única de descobrir quem os nossos amigos são realmente no seu dia a dia”.


Vejamos se existe nesta nova aplicação uma verdadeira novidade, e pensar um pouco naquilo que certas aplicações nos disponibilizam.

 O resultado da sua utilização não podia ser mais diferente do publicitado: 

 Apesar de todos os utilizadores receberem a notificação ao mesmo tempo, nada os impede de a ignorar e publicar as suas fotografias noutra altura. Muitos parecem preferir guardar o seu BeReal diário para momentos específicos: quando estão acompanhados, a ser produtivos ou a fazer algo divertido. Assim, acabam por usar a aplicação como se do Instagram se tratasse. 

É habitual ouvir amigos a dizer “o BeReal só calha quando não estou a fazer nada interessante! As pessoas vão achar que eu não faço nada!” ou “A notificação cai sempre quando acabei de acordar/estou a sair do ginásio/já tirei a maquilhagem! Fico péssima em todas as fotos!”. Até numa plataforma como o BeReal, suposto lugar de transparência e autenticidade, todos querem aparentar ser diferentes do que são e sentem pressão para embelezar a sua realidade.


Isto leva-nos a pensar naquilo que nos disponibilizam afinal estas aplicações? Que efeito produzem sobre nós e sobre a qualidade das relações que temos?

Parece fomentar a alienação, ao invés da aproximação entre pessoas e distanciam os seus utilizadores da ação e envolvimento necessários para a construção de relações reais e significativas. Não será diferente ver uma fotografia publicada por alguém todos os dias, de forma passiva e ser amigo dessa pessoa, estando envolvido e presente na sua vida?

 O seu impacto em nós e na qualidade das nossas relações:

Cada utilizador parece ser, ao mesmo tempo, uma espécie de Big Brother omnisciente, que vê o que uma série de pessoas está a fazer em momentos aleatórios do seu dia, mas também é ele próprio uma dessas pessoas, que é observada por outros Big Brothers. Que benefício trará isso às nossas vidas? Qual é a utilidade de conhecer essa informação, sobre todas essas pessoas ou de partilhar essa informação para que os outros a vejam? 

 Aliás, parece absurda a ideia de existir a necessidade de descobrir quem os nossos amigos são… O conceito de ser amigo de alguém implica, não só conhecer uma pessoa, como também gostar dela… Plataformas como esta afirmam aproximar as pessoas umas das outras, fortalecendo relações de amizade. 


 Ao utilizar estas plataformas, os seus utilizadores parecem ficar deslumbrados com a imagem que o ecrã lhes devolve, como um espelho, perdendo a capacidade de se ver como parte do mundo que os rodeia.

 Como podem as redes sociais ser autênticas, verdadeiras ou naturais, se são um palco, onde as pessoas se expõem e representam partes de si, e da sua vida? Faz sentido aspirar à criação de uma rede social autêntica e natural? Será isso sequer possível? O que significaria ser natural num mundo digital? Será o problema da autenticidade online uma questão da aplicação utilizada, ou da mentalidade das pessoas em relação ao que significa expor a sua vida para que os outros a observem, analisem e julguem? Para que serve e o que significa publicar conteúdo online? Fazemo-lo mais em prol das relações sociais, ou para criarmos uma imagem idealizada de nós mesmos? Queremos convencer os outros de que somos realmente assim, ou estamos a enganarmo-nos a nós próprios?

Parece-me a mim, que para saber quem e como os nossos amigos são no seu quotidiano, (quando não estão a posar para a foto), o melhor a fazer seria estar com eles e ter uma atitude ativa na criação e desenvolvimento de amizades: convivendo, interagindo e conversando.

O único mundo natural e autêntico seria um que não dependesse da publicação de fotografias nossas e das nossas vidas para existir. A boa notícia é que esse mundo já existe: e chama-se realidade. Está lá fora à nossa espera, se levantarmos os olhos do ecrã.