sábado, 9 de dezembro de 2023

Filmar ou aproveitar o momento?

Figura 1: rookie. (20 de maio de 2017). Twitter. https://twitter.com/sewuigi/status/865709549193441281


Ultimamente quando vou a concertos, apercebo-me de como a forma de os viver e aproveitar mudou nos últimos tempos. Graças à tecnologia ao nosso dispor, é bastante fácil gravarmos o concerto para posteriormente podermos rever as imagens e guardá-las como recordação, mas surge uma questão interessante: será que as pessoas estão mais focadas em filmar o concerto ou em realmente aproveitá-lo?

A tendência de filmar e fotografar tudo, estar com os telemóveis sempre à mão, é notável nos concertos. No meio da multidão, é difícil não notar uma parte significativa do público com os telemóveis erguidos, concentrados em filmar o concerto em vez de aproveitar a experiência única. E muitas vezes, muitas destas pessoas apenas estão a filmar o concerto para partilhar as imagens nas redes sociais.

Podemos relacionar esta situação ao conceito de Marx e Engels de "Ideologia como falsa consciência" e a "Retórica da imagem" de Roland Barthes.

A conceção de "Ideologia como falsa consciência" de Marx e Engels mostra que as crenças e visões do mundo pela sociedade podem não refletir objetivamente a realidade, mas refletem as perspetivas da classe dominante. Muitas vezes, as pessoas interiorizam ideias que são aceites por grande parte da sociedade, mesmo que não seja o seu verdadeiro ponto de vista. Isso significa que as ideias prevalecentes podem distorcer a compreensão da realidade. Nesse contexto, as pessoas que filmam de forma compulsiva durante os concertos podem estar inconscientemente a interiorizar uma ideologia que valoriza a visibilidade online.

Atualmente as pessoas partilham grande parte das suas vidas nas redes sociais, como viagens, passeios, experiências e concertos. Muitas pessoas sem se aperceberem ficam muito dependentes desta partilha nas redes sociais e sentem sempre necessidade de o fazer.  Para muitas pessoas, quanto mais likes se tem mais essa pessoa se sente aceite e notada. Por esta razão estas pessoas podem sentir pressão para partilhar cada momento, inclusive aqueles que deveriam ser apreciados de forma mais pessoal. A filmagem constante nos concertos pode ser interpretada como uma expressão desse desejo de validação, onde essa experiência é validada não apenas pela vivência do momento, mas também pela sua partilha e visibilidade online.

A "Retórica da imagem" de Roland Barthes destaca a capacidade das imagens de influenciar a perceção e visão das pessoas, indo além da mera representação visual. Podemos aplicar a perspetiva de Barthes a este tema. Essa perspetiva mostra que quando fotografamos ou filmamos um momento não é apenas como lembrança, estamos no entanto a construir uma narrativa visual. A experiência não é apenas o que aconteceu durante o concerto, mas também passa a ser como essa experiência é percebida e interpretada através das partilhas nas redes sociais. Ao filmar um concerto, as pessoas selecionam e moldam a experiência para criar uma narrativa específica. Ao escolhermos os momentos para filmar, os ângulos e a edição dessas filmagens, estamos a tomar decisões que de certa forma criam uma versão da realidade diferente da experiência vivida.

Este ano fui ao festival Meo Kalorama, e no concerto de Florence and the Machine reparei que grande parte da multidão estava com os telemóveis na mão a filmar o concerto. No fim de uma das músicas a vocalista disse que para continuar o público tinha de, naquele momento, largar e esquecer os telemóveis. Aproveitar o momento em vez de gravar o momento. Logo, até a vocalista, se sentiu de certa forma incomodada ao ver que grande parte do público que a estava a ver estava a filmar em vez de aproveitar e apreciar a música, porque ela está ali para cantar e partilhar o que gosta de fazer com o público. Esse gesto de exigir que todos largassem os telemóveis para apenas apreciarem o momento foi algo significativo, e nas músicas seguintes era notável uma maior energia do público. Fez-me pensar, o que é que queremos ter como recordação, um vídeo do concerto que podemos ver no Youtube ou a memória da experiência do concerto?

Em conclusão, esta situação frequente nos concertos mostra que a barreira entre o real e o virtual pode ser tênue e, por vezes, até mesmo enganosa. Embora a tecnologia permita que gravemos os momentos como recordação, também coloca em risco a autenticidade das experiências. Ao estarmos sempre dependentes da tecnologia e estarmos focados em filmar o momento, podemos perder a oportunidade de simplesmente viver e apreciá-lo. Logo, é importante encontrarmos um equilíbrio entre a tecnologia e a vivência de experiências únicas.