Há umas semanas atrás fiquei doente. Isto não foi algo inesperado ou surpreendente para mim, que habito este corpo desde que nasci. Com a promessa do inverno, a doença vem certa com o frio, e com as comodidades de uma laringe disfuncional. Mas desta vez foi diferente.
Fiquei doente quando fui a casa.
Conta o meu pai já ter visto o rio Cávado passar quase que por cima da ponte medieval, em Barcelos, cidade localizada na província do Minho. Lá nasci, fiz-me gente, e vivi sempre (sem nunca sequer ter pintado por cima as paredes que risquei com caneta quando pequena) até aos meus dezoito anos. Gostava de dizer que ainda lá vivo, mas não sei dar termo à situação de alguém que vive a outra metade do ano num sítio que não lhe pertence.
O frio em Lisboa é diferente. Cá não vemos a condensação da respiração e não se vê a gente ao alvorecer - quando o sol ainda não é mais que uma lâmpada no céu - com garrafões de água fria para descongelar os vidros dos carros, que por muitos lençóis e tecidos que se usem para agasalha-los como a um filho, o frio da noite nunca perdoa. Cá não há abundante humidade, as portas de casa não incham, e o frio não chega nunca aos ossos. Percebi então, enquanto explicava à amável farmacêutica da Farmácia de Santo Amaro os acontecimentos que levaram os meus lábios a rebentar por completo, o quão ingénua fui.
Fiquei doente porque fui a casa.
A realização agrediu-me. O meu corpo acolheu Lisboa e tomou-a como casa. Duma forma insensível e cruel, sem levar os meus sentimentos em consideração, rejeitou Barcelos. Choque térmico, menina.
Vi-me sem casa, inquilina da terra de ninguém. Em Lisboa não me revejo, e em Barcelos, esgoto-me. Passei a semana subsequente embrulhada em cachecóis e numa tristeza sincera, à procura das respostas: Somos onde estamos, ou donde vimos? O que é a casa?
Numa das aulas falamos d’O Homem Unidimensional, de Herbert Marcuse. Marcuse fala sobre as falsas necessidades, o que me remeteu para a obra de Simone Weil, A Necessidade de Raízes (1949), onde são abordadas as verdadeiras necessidades. No livro, Weil defende a discussão não só das necessidades do corpo (comida, água, etc.), mas também as da alma (ordem, obrigações, responsabilidade, igualdade, liberdade, hierarquia, raízes, afeto e valores espirituais) como sendo tão importantes quanto as primeiras para a contribuição do bem estar do indivíduo.
Percebi e senti fortemente o que Weil explica na sua obra. O corte com as minhas próprias raízes e a confirmação dessa própria separação por meio de uma reação física e tangível fez-me sentir deslocada de mim mesma.
Casa não é onde quero ou tenciono pertencer, é onde é necessário estar. Sou Barcelos e Lisboa, sou todas as cidades que visitei e todos os quartos onde já dormi. Mas pertenço onde reconheço e me relaciono com as pessoas que me rodeiam, onde a paisagem muda com as estações e cresce comigo.