Todos sabemos quem é a
Marie Antoinette. Ultimamente, até se viram muitos disfarces de Halloween que
representavam a rainha. Quando pensamos nesta figura, poder-nos-á vir à mente uma
imagem da monarca no século XVIII, rodeada de luxo dourado, que diz aos seus
súbditos empobrecidos para comerem brioche. Ou, talvez, a rainha, desgraçada,
na Place de la Révolution, pronta para ser guilhotinada por alta traição. Seja
como for, esta personagem histórica terá sempre um caracter mitológico e
político atemporal.
No outro dia, fui a casa
de uma pessoa e estava pendurado na parede de um corredor um retrato da Marie
Antoinette. Quando perguntei à pessoa o porquê de ter esta monarca pendurada
como memorabilia decorativa, foi-me dito que tinha estima à condição
feminina e vulnerável da Marie Antoinette.
É popularmente conhecido
que a rainha teria dito (supostamente) “Que comam brioche” quando fora
informada da miséria e da fome que fustigava a população gaulesa na era
do reinado de Luís XIV. Este ditado tornou-se uma das anedotas mais
emblemáticas da cultura francesa, e foi mencionado por Rosseau na sua
autobiografia “Les confession”, que passo a citar:
“Finalmente eu lembrei-me do
expediente de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham
pão, e que respondeu: «Que comam brioche.»”
— Jean-Jacques
Rousseau, “Les confession”, traduzido para português
Marie Antoinette, além de ser um símbolo de opulência
aristocrática e poder absoluto, é também um ícone altamente ideológico e
político. Existe um constante debate se ela seria uma frívola vítima ou uma
vilã de um sistema social que lhe estava associado. O facto de Marie Antoinette
ser tão relevante até à era atual na cultura pop e de se ter tornado num
artefacto comercial lembrou-me de temas cruciais mencionados na teoria crítica
da escola de Frankfurt.
A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt foi um movimento, protagonizado
por filosófos como Marcuse, Walter Benjamin, Horkheimer, Adorno, que emergiu
depois do período da Segunda Guerra Mundial. O movimento tinha como herança o percurso
ideológico e metodológico de Karl Marx e nasceu devido à ortodoxia
filosófica dentro do pensamento comunista e ao descontentamento com a sua
aplicação política. Portanto, esta escola virou o seu foco de estudo para as
raízes desse mesmo marxismo no qual não encontraram respostas para a emergência
do capitalismo.
Esta nova vertente filosófica permitiu um deslocamento das
estruturas simbólicas daquilo que são as formas de vida, materializadas nas
práticas sociais, na formação da personalidade individual e nos diferentes
padrões culturais, estando estes inseridos no cenário pós-guerra e do
crescimento do capitalismo e da globalização.
É precisamente na crítica de Adorno e de Horkheimer que se
fala da indústria cultural como meio de propagação do capitalismo, no qual se
dá uma desumanização das relações e dos significados culturais originais. A
crítica defende que a transformação cultural na sociedade moderna sucumbe a uma
estética superficial que substitui a apreciação crítica e histórica pela
satisfação consumista, promovendo uma relação de alienação com a cultura e a
história.
Considero, então, que a utilização da figura de Marie
Antoinette como elemento de decoração se trata de um exemplo da tese de Adorno
e Horkheimer por existir a transformação de uma figura histórica num produto da
indústria cultural. Por se ter tornado um ícone da cultura pop contemporânea, o
uso e o culto da sua imagem pode significar uma rutura com as suas associações
históricas e tornar-se num mero objeto estético, especialmente por ser reproduzido
e comercializado em massa, desprovido do seu próprio peso simbólico.
Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de Sua
Reprodutibilidade Técnica, explicita o fenómeno da perda de “aura” dos
artefactos quando estes são reproduzidas em massa. O conceito de “aura”
refere-se à autenticidade e singulariedade que uma obra possui dentro do seu
contexto original. Esta perda de aura, portanto, segundo Benjamin, é uma forma
de alienação cultural: o público consome a imagem de uma personagem histórica
complexa sem refletir sobre a sua relevância.
Assim, poderá a utilização da imagem da rainha, através de
um quadro, transformá-la num “produto” que passe a ser consumido isento do seu
contexto? Ou será esta uma forma de banalização e de alienação cultural que
reforça o status quo?