sábado, 16 de novembro de 2024

Marie Antoinette

 

Todos sabemos quem é a Marie Antoinette. Ultimamente, até se viram muitos disfarces de Halloween que representavam a rainha. Quando pensamos nesta figura, poder-nos-á vir à mente uma imagem da monarca no século XVIII, rodeada de luxo dourado, que diz aos seus súbditos empobrecidos para comerem brioche. Ou, talvez, a rainha, desgraçada, na Place de la Révolution, pronta para ser guilhotinada por alta traição. Seja como for, esta personagem histórica terá sempre um caracter mitológico e político atemporal.

No outro dia, fui a casa de uma pessoa e estava pendurado na parede de um corredor um retrato da Marie Antoinette. Quando perguntei à pessoa o porquê de ter esta monarca pendurada como memorabilia decorativa, foi-me dito que tinha estima à condição feminina e vulnerável da Marie Antoinette.

É popularmente conhecido que a rainha teria dito (supostamente) “Que comam brioche” quando fora informada da miséria e da fome que fustigava a população gaulesa na era do reinado de Luís XIV. Este ditado tornou-se uma das anedotas mais emblemáticas da cultura francesa, e foi mencionado por Rosseau na sua autobiografia “Les confession”, que passo a citar:

“Finalmente eu lembrei-me do expediente de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham pão, e que respondeu: «Que comam brioche.»”

— Jean-Jacques Rousseau, “Les confession”, traduzido para português

Marie Antoinette, além de ser um símbolo de opulência aristocrática e poder absoluto, é também um ícone altamente ideológico e político. Existe um constante debate se ela seria uma frívola vítima ou uma vilã de um sistema social que lhe estava associado. O facto de Marie Antoinette ser tão relevante até à era atual na cultura pop e de se ter tornado num artefacto comercial lembrou-me de temas cruciais mencionados na teoria crítica da escola de Frankfurt.

A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt foi um movimento, protagonizado por filosófos como Marcuse, Walter Benjamin, Horkheimer, Adorno, que emergiu depois do período da Segunda Guerra Mundial. O movimento tinha como herança o percurso ideológico e metodológico de Karl Marx e nasceu devido à ortodoxia filosófica dentro do pensamento comunista e ao descontentamento com a sua aplicação política. Portanto, esta escola virou o seu foco de estudo para as raízes desse mesmo marxismo no qual não encontraram respostas para a emergência do capitalismo.

Esta nova vertente filosófica permitiu um deslocamento das estruturas simbólicas daquilo que são as formas de vida, materializadas nas práticas sociais, na formação da personalidade individual e nos diferentes padrões culturais, estando estes inseridos no cenário pós-guerra e do crescimento do capitalismo e da globalização.

É precisamente na crítica de Adorno e de Horkheimer que se fala da indústria cultural como meio de propagação do capitalismo, no qual se dá uma desumanização das relações e dos significados culturais originais. A crítica defende que a transformação cultural na sociedade moderna sucumbe a uma estética superficial que substitui a apreciação crítica e histórica pela satisfação consumista, promovendo uma relação de alienação com a cultura e a história.

Considero, então, que a utilização da figura de Marie Antoinette como elemento de decoração se trata de um exemplo da tese de Adorno e Horkheimer por existir a transformação de uma figura histórica num produto da indústria cultural. Por se ter tornado um ícone da cultura pop contemporânea, o uso e o culto da sua imagem pode significar uma rutura com as suas associações históricas e tornar-se num mero objeto estético, especialmente por ser reproduzido e comercializado em massa, desprovido do seu próprio peso simbólico.

Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, explicita o fenómeno da perda de “aura” dos artefactos quando estes são reproduzidas em massa. O conceito de “aura” refere-se à autenticidade e singulariedade que uma obra possui dentro do seu contexto original. Esta perda de aura, portanto, segundo Benjamin, é uma forma de alienação cultural: o público consome a imagem de uma personagem histórica complexa sem refletir sobre a sua relevância.

Assim, poderá a utilização da imagem da rainha, através de um quadro, transformá-la num “produto” que passe a ser consumido isento do seu contexto? Ou será esta uma forma de banalização e de alienação cultural que reforça o status quo?