quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Uma tempestade num copo de água.

Considero-me uma pessoa sensivelmente pessimista. Sou bastante alegre mas não vale a pena tentar e vir aqui mentir e dizer que sou otimista quando não o sou. No entanto, o meu pessimismo é de certa forma contido, impedido de me consumir por completo. Alguma parte do meu cérebro, mesmo que não pontualmente, impede-me de sentir emoções negativas durante longos períodos, substituindo os habituais pensamentos negativos com uma paisagem bonita que nunca tinha visto, ou relembra-me que a vida já foi bastante pior do que naquele momento e, de forma quase imediata, os pensamentos se dissipam com as correntes suaves do vento. E eu sinto-me bem.

Considero então, esta peculiaridade uma espécie de programa, um antivírus, que me protege de mim própria e do poder que a mente tem sobre si mesma, que foi instalado no meu sistema e que construiu paredes para conter estes pensamentos demasiado inquietantes. Com pequenas janelas para poder relembrar-me da minha condição humana, é assim que coexistimos no meu organismo.

Hoje, com o intuito de fazer uma reflexão pessoal, olhei para a janela de uma das fachadas e relembrei-me do porquê destas fachada nem terem porta. Se estes aglomerados multiformes coexistissem ao meu lado, passeando livremente e sem supervisão, eu penso que já nem teria esta minha casa. Um residente particular da minha mente passa os dias a me chamar a atenção quando me encontro na faculdade. Ele, como eu, tem uma rotina. E as nossas são bastante interligadas. Para poder contar esta história vou dar-lhe o nome provisório de Abílio.


Encontro-me eu, excitada para um novo semestre na licenciatura de Design de Comunicação, pronta para realizar trabalhos que colocarei no portfólio como medalhas num blusão verde com padrões de camuflagem. Abílio ainda se encontra em estado de hibernação. Chego a faculdade e sou automaticamente bombardeada com a proposta para o primeiro trabalho do ano. Ouço o professor a ler o enunciado críptico, escrito ainda com o antigo acordo ortográfico, e sinto como que raios do sol a proliferarem-se pelo meu corpo. Sinto o calor da energia, a criatividade a passear pelas minhas conexões nervais até chegar à ponta dos meus dedos que apoiam a caneta no meu caderno e que aponta rapidamente estas ideias. Subitamente ouço um bater num vidro. É o Abílio, que ignoro com facilidade devido ao turbilhão de carga elétrica.

As semanas que se seguem, Abílio faz ritmos e batuques no vidro da sua janela sempre que me sento para me concentrar e trabalhar. Quase como que me perseguisse, sabe exatamente quando tocar estas melodias, ainda não muito ensurdecedoras naquela janela. O trabalho começa a desenvolver-se e, com isso, uma carga de stress aloja-se na minha coluna e um vibrar constante no meu tímpano (provocado pelo Abílio) que não me permite descansar bem.

E, num momento “completamente inesperado”, Abílio dá um toque a mais na janela, que se estilhaça completamente. O cair destes pedaços afiados no chão provoca uma forte vibração cerebral, e eu finalmente sinto Abílio, consumido por raiva tempestuosa, a sair pela janela fora para ir comprar uma janela nova. A intensidade desta raiva provoca uma vaga de mau tempo.

A chuva mantém os transportes públicos impedidos de funcionar corretamente, impedindo Abílio de ir para casa, e obrigando o meu mau-estar e falta de ânimo da minha parte, levando-me à procrastinação. A trovoada de signos e significantes intensifica-se, as nuvens que agora povoam os meus pensamentos tornam-se cada vez mais cinzentas e as rajadas de vento de inseguranças, medo e falta de confiança movem-se a 100km por hora. Tentando controlar a tempestade, procuro compreender de forma pragmática a área da meteorologia (sem sucesso), até que me sento numa cadeira de auditório. Não é uma aula de meteorologia mas até que começo a entender este fenómeno.

Os ventos provenientes do hemisfério esquerdo do meu cérebro esfriam o quarto de Abílio com a eminente compreensão de que o que me agrada em ser criativa e fazer trabalhos que puxem por lados mais exóticos da minha mente, são puramente efémeros. A ideia de que, no mundo do consumo capitalista em que vim nascer, nada do que estou a fazer agora com gosto, sem rigor, por diversão e por amor, está realmente a preparar-me para daqui a uns anos é, de facto, arrepiante. O mundo está cada vez a tornar-se mais material, cada vez mais estes mapas de significados assumem-se como verdades universais e cegam as pessoas para o verdadeiro prazer e misticidade que reside no material: o seu processo. E, no caminho, esta ideologia começa a vendar com cachecóis as pessoas à nossa volta para verem o mesmo preto, na promessa de proteger do mau tempo.

Abílio vê, na primeira “pessoa”, este inverno a aproximar-se. E eu sinto Abílio. Sinto os calafrios nas costas de ter de me conformar com estes ideais, as frieiras nas minhas mãos de ter de trabalhar mesmo sem as sentir, o nariz completamente entupido de ideias que, como o ar, nem entra nem saem, e quando saí, é só muco. Sinto todo este futuro a aproximar-se e sinto-me impotente. E para me proteger, coloco as 20 camadas de camisolas interiores com uma etiqueta que cita: 100% expectativas baixas. “Afinal, como é que alguém é capaz de gostar do seu trabalho quando está prescrito o que irá fazer para o resto da sua vida?” diz (mais ou menos) Marx nas suas palavras projetadas no Grande Auditório.

Assim, encontro o meu processo criativo completamente congelado, num equilíbrio desequilibrado de não me sentir cativada para trabalhar e me conhecer através do trabalho, e ter de trabalhar de qualquer forma. E penso só na possibilidade de eu poder ser só mais um parafuso nesta maquinaria masoquista em que nos cravam um X na cabeça só para nos poderem apertar cada vez mais a este sistema. Eu não quero ser só mais uma cabeça flangeada.

Eu entendo o Abílio, ser condenado a representar essa realidade onde a produção é mais importante do que a criação, e ter de fazer parte dela sem emenda nem discussão. Ter de coexistir consigo mesmo, o que em circunstâncias normais já é complicado (na minha experiência), num ciclo sem fim de trabalho mistificado que produz mercadoria mistificada e que é trocado por dinheiro mistificado sum processo infindável.

E o Abílio não me deseja mal, somente quer manter essa realidade tangível. Mas o vidro era fraco. E enquanto as janelas forem de vidro, irão sempre partir-se, é uma questão de tempo. Mas talvez, daqui a uns anos, Abílio possa só sair pela janela e aproveitar o sol que entra em mim.