O automóvel é um dos grandes símbolos do progresso industrial do século XX, intrinsecamente ligado ao Sonho Americano e às narrativas de liberdade, aventura e individualidade. Desde os elegantes Cadillacs dos anos 1950 aos potentes muscle cars dos anos 1960 e 70, o carro a combustão representava não apenas um meio de transporte, mas também um objeto com alma: cheio de falhas, ruídos e imprevisibilidades que criavam uma conexão emocional entre o motorista e a máquina.
Com o advento do carro elétrico, essa relação começa a se desmantelar. O automóvel, agora desprovido do som do motor, da vibração sob o capô e das pequenas imperfeições que o tornavam humano, transforma-se em um utensílio funcional, quase clínico. O carro elétrico, embora ecologicamente mais viável, é visto por muitos como "sem alma", desumanizado, uma máquina que simboliza eficiência acima de tudo, sem a poesia que outrora marcava os automóveis tradicionais.
Essa transformação pode ser lida à luz de alguns conceitos do programa. Barthes, por exemplo, em O Novo Citroën, descreve como a indústria automotiva cria mitologias em torno dos seus produtos. O carro elétrico, nesse sentido, poderia ser visto como o novo objeto mitológico do século XXI, mas com uma narrativa distinta: não mais a de poder e liberdade individual, mas a de responsabilidade coletiva e sustentabilidade. No entanto, essa nova mitologia não é isenta de crítica. Como Barthes apontaria, ela é construída por meio de uma retórica de perfeição e progresso que ignora as nuances humanas, as falhas que nos conectam emocionalmente aos objetos.
Além disso, Foucault, em Vigiar e Punir, poderia oferecer uma análise sobre como o carro elétrico se insere em um sistema mais amplo de controle e disciplina. Com tecnologias como a condução autônoma e a coleta de dados em tempo real, o automóvel deixa de ser um instrumento de liberdade e passa a ser um mecanismo que participa da vigilância constante do indivíduo. A utopia de mobilidade prometida pelo carro elétrico esconde um aparato disciplinar que regulamenta os movimentos e hábitos do motorista, transformando o carro em um utensílio altamente regulado e monitorado.
A ideia da falta de alma no carro elétrico também é dialogada com Marx, em particular com o conceito de fetichismo da mercadoria. Assim como outros objetos do capitalismo moderno, o carro elétrico é alienado de sua essência humana e reduzido à sua função utilitária e à promessa de eficiência. A máquina que antes evocava desejo, aventura e emoção é agora vendida como um produto racional, ecoando a alienação do consumidor na sociedade capitalista avançada.
Assim como o plástico, analisado por Barthes, que se torna onipresente e perde seu significado singular, o carro elétrico também se desumaniza à medida que se torna apenas mais um utensílio no vasto universo das mercadorias do capitalismo contemporâneo. O automóvel deixa de ser um símbolo de liberdade para se transformar em um indicador das limitações e contradições do progresso humano no século XXI.