sábado, 22 de novembro de 2025

Tradução da Imagem: Entre o Olhar e a Palavra

A dificuldade em pensar uma imagem por meio das palavras (sobretudo a imagem artística, que não nasce para comunicar de forma direta ou utilitária) revela uma tensão fundamental entre o domínio visual e o verbal. Há imagens que parecem resistir a qualquer explicação. Não nasceram para falar, nasceram para ser vistas. Talvez seja por isso que transformá-las em palavras se torna um gesto tão delicado. Entre o que os olhos captam e o que a língua consegue dizer, abre-se um intervalo: um silêncio cheio, suspenso, onde o pensamento aprende a mover-se com cuidado.

As ideias de Saussure ajudam a compreender esta distância: a linguagem verbal caminha em linha (a linearidade do significante), passo a passo a percorrer o tempo, enquanto a visual se oferece inteira, de uma só vez. E assim, ao “traduzir” uma imagem para palavras, fazemos necessariamente uma travessia: deixamos o território do simultâneo para entrar no território do sequencial.

É neste espaço de passagem que Filomena Molder, em Palavras Aladas, no capítulo “Da Tradução”, lança luz. Para ela, traduzir não é transportar um sentido intacto, mas acolher aquilo que chega vulnerável, indeterminado. A tradução torna-se hospitalidade: uma mão que se estende àquilo que não lhe cabe totalmente. Talvez seja assim com as imagens, nunca as dizemos por completo, apenas lhes oferecemos um lugar onde possam pousar. Ao falar de tradução, Molder descreve a linguagem como um espaço que acolhe o indizível, que lhe dá asas. A palavra não pretende substituir o mundo sensível, mas tornar-se um lugar onde o sensível pode pousar, repousar e transformar-se.

John Berger (em Modos de Ver) lembra-nos que o ato de ver não é puro; é moldado por hábitos, memórias e expectativas. Ao escrever sobre uma imagem, não descrevemos apenas o que ela mostra: descobrimos o modo como aprendemos a olhar. E Martine Joly (em As Imagens e os Signos) acrescenta que a imagem, tal como a língua, também se constrói por códigos, embora os reconheçamos com o corpo antes de os reconhecermos com a mente.

Traduzir uma imagem não é capturá-la, é acompanhá-la. É aceitar que algo se perde, mas também que algo se ganha: uma outra respiração, uma nova forma de presença. Entre o olhar e a palavra, nada coincide, e mesmo assim, tentamos fazer uma quase ekphrasis. Talvez seja esse o milagre discreto da tradução: permitir que a imagem viaje, transformada, até ao lugar onde a linguagem se torna, por um instante, suficientemente ampla para a receber.