quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O Male Gaze Sobre a Mulher Lésbica

 A minha namorada fez 20 anos em setembro. Na altura em que a data se aproximava evitava falar-me disso e não gostava muito que mencionasse aqueles dois dígitos que iam constituir a sua idade. Disse-me então que “fazer 20 anos é uma forma clara de traçar o momento em que começo a envelhecer”. Na altura não pensei tanto no assunto e apenas lhe disse que tem uma vida pela frente que definitivamente não está velha. Passei algum tempo a pensar sobre o assunto e acabei por tomar consciência mais em como a idade da mulher é quase como uma sentença dada pela sociedade e de como uma pessoa tão próxima de mim estava a lidar com isso. 

É como se a partir de uma certa altura entramos numa contagem decrescente para deixarmos de ser desejáveis e, segundo os padrões da nossa cultura, temos de começar a preservar o que somos esteticamente. Até na altura em que é se pode atingir o tão esperado padrão de beleza, raparigas de 20 anos estão preocupadas na possibilidade de ficarem velhas e indesejáveis. Algo que não reparei só na minha namorada mas também em amigas . Para além disso, quantas vezes não é comum ouvir mulheres mais velhas a dizer “para aproveitarmos enquanto somos novas porque depois ficamos estragadas”.


Senhoras de terceira idade queixam-se por não terem o corpo e a fisionomia que tinham com 20 anos. Como se envelhecer não fosse um processo natural do corpo humano. Algo esteticamente indesejado, o que me impressiona. Sendo assim, a percepção da própria idade é moldada por esses ideais. Em vez de celebrarmos o envelhecimento como um processo natural e uma acumulação de experiências, somos ensinadas a temê-lo. É incrível como a sociedade estabelece prazos e expectativas para a aparência e o valor de uma mulher. 


Estes ideais de beleza são espelhados no olhar masculino sobre a mulher, o que captou a minha atenção sobre o que a minha namorada disse. Este olhar está de tal forma embutido na sociedade e na forma se cria uma rapariga, que até mulheres lésbicas, que de certa forma se distanciam do sexo oposto, o sentem na pele. Apesar das circunstâncias, a mulher lésbica é exposta constantemente ao olhar masculino o que faz com que se sintam também alvos da sua objetificação. Para não falar da fetichização das relações homoafetivas entre duas mulheres que nos media são, maior parte das vezes, escritas por homens e exclusivamente para os agradar, colocando duas mulheres como meros objetos do seu prazer. 


Eu, enquanto uma mulher lésbica que não se apresenta de uma forma feminina e que nunca se tentou realmente encaixar nos padrões mais formatados de beleza feminina, estava um pouco alienada de como tal poderia acontecer a lésbicas diferentes de mim. Até mesmo nas comunidades que se afastam dos padrões heteronormativos, há uma influência persistente desses ideais de beleza convencionais.


A pressão social em torno da idade e da beleza feminina é ainda uma imposição que permeia a vida das mulheres desde cedo. É deplorável que isto aconteça ainda hoje.


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

O Aeroporto Moderno

 

O aeroporto moderno

 O aeroporto moderno, onde a biossegurança orwelliana se encontra com a indulgência huxleyiana.

O filósofo francês Mark Auge desenvolveu um conceito a que chama "não-lugares" para descrever os espaços criados pela globalização que não se destinam a ser habitados, mas sim atravessados. O aeroporto, a estação de comboios, a sala de espera ou o autocarro. Estes espaços são desprovidos de identidade, de ligação pessoal e de sentido de lugar. São não-lugares, iguais em todo o mundo. Uma vez que o não-lugar existe como um canal e não como um lugar para ser habitado, a sua função é operar e processar, guiar e sinalizar, empurrar e dirigir.

O sujeito dentro do não-lugar é desincentivado de pensar ou agir independentemente do processo do qual ele agora faz parte. Sentar-se-á onde lhe for ordenado, caminhará onde lhe for instruído e aceitará o que o funcionamento do sistema exigir. A velocidade do fluxo de corpos humanos também está fora do controlo do sujeito, e a possibilidade de causar uma perturbação no processo através de um bilhete ou de um portão avariado provoca um pânico de baixo nível no sujeito que deseja passar pelo não-lugar em piloto automático.

Tendo cedido a sua individualidade e agência a um processo técnico de eficiência, a massa recém-globalizada enfrenta ainda mais desumanização e humilhação ao chegar ao portão de segurança do aeroporto. Aqui, a privacidade será descartada à medida que o viajante se submete a tirar os sapatos e o cinto, esvaziando publicamente os bolsos de objetos privados e ficando vulnerável e à mercê do pessoal do aeroporto que, sabendo que está a lidar com alguém que é totalmente impotente, trata o viajante com o desprezo que os fracos e impotentes sempre recebem.

O objetivo é, naturalmente, "despachar" e não interromper o fluxo, acompanhar o tráfego humano - não dar nas vistas.

Esqueci-me das várias regras e deixei o meu computador portátil dentro da bagagem de mão da mochila. Fui levado para um lado e pediram-me para retirar o computador portátil da mochila, o que fiz em público, revelando os boxers sobresselentes e a t-shirt que usei como acolchoamento a uma grande área cheia de estranhos. O meu mecanismo de sobrevivência durante esta experiência foi dizer a mim próprio que não importava, os funcionários viam isto todos os dias, o dia todo. Por outras palavras, eu não era especial, era apenas parte de uma biomassa que eles governavam. A separação dos meus aparelhos eletrónicos enquanto os passavam pela fila num tabuleiro deixou-me nervoso - dentro deles estava a minha vida e todos os meus dados pessoais - mas também aqui percebi que a culpa era minha. Eu não importava.

Tinha feito as pazes com os funcionários do aeroporto. Eu não era um homem. Fazia parte de um processo. Quando o pessoal do aeroporto me deu instruções para entrar na cabina de scanner onde um homem, pequeno e gordo, me ia examinar os testículos e o cólon, quase nem dei por isso. Não era nada de especial, não importava, estavam sempre a ver isto.

Deixaram-me ir para o tabuleiro onde os meus pertences pessoais, sapatos e cinto estavam à espera. Agora vem o dilema: é mais importante esconder os meus aparelhos para manter a fila a andar? Ou devo calçar os sapatos, deixando os aparelhos expostos?

O ritual de humilhação tinha chegado ao fim, eu tinha passado pela submissão e pelo enfraquecimento, tinha nascido a degradação da minha masculinidade e da minha individualidade com o cumprimento cobarde que me era exigido, e tinha agora a liberdade de virar a esquina e ver... o paraíso!

A alcatifa azul, sobre a qual um milhão de pés sem sapatos tinham pisado, dava agora lugar a um pavimento de mármore negro que brilhava. O ar encheu-se de fragrâncias de boutique enquanto eu avançava para o brilho deslumbrante de dez mil luzes cintilantes que se refletiam no chão de mármore. 

O impacto psicológico é o de eliminar o sabor desagradável deixado pela máquina de moer carne da zona de biossegurança e, em vez disso, ganhar os ares e as graças do jet-setter de alto estatuto. O orwelliano deu lugar ao huxleyiano. No lugar da negação do eu, havia a sua afirmação. Pelo simples facto de se estar presente e de se ter acesso a artigos de luxo tão sumptuosos, era-se um indivíduo exigente e de alta patente. Não sou imune; olhei profunda e demoradamente para os relógios mais caros.

As boutiques e marcas de luxo expostas na zona Duty-Free são a forma de o globalismo empresarial agitar as penas da cauda como um pavão. Esta é a resposta à pergunta "porquê?". O cumprimento da promessa do globalismo de um mundo sem fronteiras, onde cada sujeito é libertado de identidades anteriores e pode agora reformular-se em torno do consumismo.

Por cima das luzes cintilantes e do mármore espelhado, podem ver-se vigas e vigas de ferro. Há um vazio em tudo isto. No final, é mais um não-lugar, apesar dos seus melhores esforços.

 

A Sociedade e o Mercado da Arte

    Existe uma profunda ligação entre sociedade e fatores que influenciam quem cria e quem está encarregue de interpretar e criar os critérios de valorização da arte. Prova maior é o funcionamento do mercado artístico e a corrente capitalização da arte. 

    Numa sociedade submersa no capitalismo, o conceito de arte tem vindo a sofrer grandes transformações. O objeto artístico, cujo conteúdo era muitas vezes visto como resultado da experiência e identidade única e individual, é hoje frequentemente fruto de um modelo pré-definido resultante dos moldes económicos vigentes. A mentalidade de empreendimento comercial ofusca o que outrora era a criatividade, a consciência e a sensibilidade estética: o artista mainstream cria o objeto não pelo seu valor artístico e cultural, mas pelo valor económico que a sociedade pode atribuir à obra. Esta rutura leva-nos inevitavelmente à mercantilização da arte e consequente tratamento da mesma como mero objeto de investimento. A arte dilui-se passando a ser mais um produto em stock à espera de ser vendido.

    Na economia de mercado livre, a arte está sucessivamente sujeita aos princípios de oferta e procura. A visão da sociedade toldada pelo presente estado avançado do capitalismo tem ditado os critérios das instituições de arte: procuram-se artistas cujas peças de arte sejam populares entre círculos de elite e que simbolizem status. O poder que a sociedade exerce sobre as políticas internas das instituições de arte reflete-se no impacto que estas detêm no mundo da arte e do artista. 

    As instituições de arte têm um papel significativo na escolha de obras e na determinação do seu sucesso no mercado, sendo habitual o público atribuir maior valor a um objeto pertencente a um projeto curatorial ou acervo de instituição influente. Esta concentração de poder na esfera artística leva à imergência de novas normas e trends de mercado e resulta na inflação de obras de determinados períodos e estilos. Muitos artistas sentem-se condicionados e descartam a sua visão artística para criar peças que se alinhem com as trends do mercado e colecionadores de arte adquirem obras potencialmente lucrativas em vez de obras que realmente gostariam de ter na sua coleção. Cria-se assim uma exclusividade e elitismo artístico que limita a diversidade e estagna a inovação. 

    O monopólio de arte perpetua a ausência de liberdade artística: a arte ao submeter-se perde o seu significado enquanto expressão própria, única e individual. Tal como Giorgio Agamben afirma, o artista torna-se no indivíduo sem conteúdo, aquele que não tem outra identidade senão um perpetuo emergir da inexistência de expressão

A Adultização de meninas e a Infantilização de mulheres

 


 Um tema, que à primeira vista é contraditório, contudo tão normalizado, e no qual se tornara hegemónico. A adultização de meninas e a infatilização de mulheres, é um fenómeno que acontece devido à pressão estética do patriarcado desde a infância, e que assombra a mulher até à sua vida adulta. Assim, a pressão da jovem menina em  ser madura, comportada, a vestir-se como uma jovem mulher, e para assim justificar os olhares objetificantes da visão masculina. Por outro lado a mulher adulta tem que ficar em uma  cápsula do tempo, na qual não envelhece, e deve ter uma atitude jovem e leve, e obviamente sem rugas, e com uma aparência tão jovem como na sua adolescência.

Ser mulher sobre um sistema patriarcal é uma constante pressão, sobre o que deveríamos ser. Tanto por influência da média, cinematográfia e da música. Todos os meios estão contra nós, dizendo-nos como agir, vestir, tudo para agilizar o olhar masculino. Pois é através dele, é que somos vistas. Tudo gira à volta desse olhar, a nossa educação, maneirismos, rotinas, o que lemos, o que vemos na televisão ou  nas redes sociais . Nesse olhar, é bem visto, mulheres perfeitas, jovens, magras, brancas, sem rugas no seu “pico da idade”.

Contudo qual é o preço desse olhar?

Valerá o preço da adultização de meninas, de roubarem as suas infâncias, para se tornarem, objectos apelativos, de roubarem a sua humanidade, de as tonarem em meras manequins em um mundo capitalista, sendo vistas como um produto. Apesar de ter havido uma grande evolução, desde o caso mais notório como Brooke Shields, no entanto ainda é recorrente, através da evolução das redes sociais e do acesso a jovens meninas a essas plataformas, sendo as mesmas a exporem-se, sem consciência de serem vitimas dessa adultização.

No outro lado do espectro, temos as mulheres adultas, às quais lhes é vendido diariamente a juventude, através de procedimentos estéticos, produtos milagrosos, e algumas injecções, em troca de uma grande quantia de dinheiro, é-lhes permitido tornarem-se outra vez jovens e belas . A demonização do envelhecimento, e a exigência de uma estagnação do tempo, é sem duvida patrocinado pela industria estética e pelo sistema capitalista, marca-nos, como nunca suficientes, como se a alteração inevitável do tempo, estivesse no nosso controlo, e o nosso valor tivesse data limite.

Tudo isto, para um único olhar que nos cicatriza para sempre e que nos influencia em tudo, pelo menos  até ao fim da nossa validade, só pelos seus olhos.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Há algo no ar

 

Há algo no ar

Entro no elevador de manhã e sou embrulhada numa nuvem de perfume, fico enjoada e nem passado meio-dia me sai o cheiro do nariz. Até que ponto é agradável e porquê a necessidade de despejar um frasco de perfume todas as manhãs?

 

É um hábito que vem desde o Antigo Egito, onde eram queimadas resinas, cascas e outras matérias orgânicas, para criar um fumo que chegasse até aos deuses como via de contacto entre os humanos e os deuses, a quem eram oferecidas oferendas. Os Romanos, fãs dos banhos, usavam as fragrâncias nas casas de banho públicas, produtos de corpo, cabelo e em óleos. Na China era um desinfetante e purificante de espaços, acreditava-se que podia limpar as doenças. Na Idade Média, foi criado o conceito de perfume pessoal e passou a ser popular na Europa. Aqui o perfume passou a ser usado como um objeto da moda e era usado por homens e mulheres nos seus corpos, roupas e cabeleiras. Era tanto uma máscara para o odor de um corpo deslavado como uma ostentação de luxo, o cheiro a perfume distinguia as classes. Em França a perfumaria era uma arte delicada e com técnicas precisas.

 

Hoje em dia, parece que todos estes significados se dissociaram do perfume, o uso do perfume é feito quase automaticamente, sem qualquer pensamento. Toda a gente tem acesso e deixou de ter significado. Não é feito definitivamente com o intuito de conectar com os deuses, como purificante também não. Como os Romanos, usamos cremes, champôs e géis de banho com fragrâncias, mas atualmente não tem nenhum fator especial, estranhamos qualquer desses produtos que não tenha um cheiro intenso. Ninguém tem um perfume especial ou personalizado, é feito em massas e com poucas distinções, sem ser o cítrico, floral, frutal, etc… e a sua produção também tem pouco de arte e meticuloso.

Discriminação premeditada nos dias de hoje, um caso de estudo

Hoje em dia somos consumidos pelas redes sociais. É quase impossível fugir à influência e ao impacto que estas têm no dia-a-dia do consumidor. Isto porque, ao contrário dos primórdios destas plataformas, que tinham o propósito quase exclusivo de conectar pessoas, estando elas perto ou longe, através de uns quantos cliques, hoje em dia estas plataformas têm muitas mais funcionalidades. Jornais e os próprios jornalistas, artistas, marcas, todas estas utilizam as redes sociais a seu proveito, para difundirem aquilo que lhes é importante; jornalistas podem agora trabalhar exclusivamente por conta própria, relatando as suas reportagens nas próprias redes sociais; artistas, especialmente músicos, agora mais do que nunca, podem difundir o seu conteúdo de forma independente, sem a necessidade de se associar a uma editora de discos, ou estarem dependentes do tempo de rádio. As redes sociais acabam por dar esta liberdade ao utilizador, a troco de "nada" muitas vezes, já que a esmagadora maioria delas é de uso gratuito.

Digo "nada" porque, obviamente, não é mesmo nada. O grande rendimento destas plataformas vem da publicidade e dos anúncios que as mais variadas marcas pagam para poder ter na plataforma. Este sitema de publicidade é muitas vezes específico a cada utilizador (ou seja, cada perfil pessoal terá certos anúncios diferentes de outros perfis), baseado nos nossos gostos pessoais ou nas nossas opiniões sobre os mais variados temas. Isto é possível pois as plataformas vendem esta informação, pessoal a cada um de nós, a uma série de entidades associadas a algoritmos de publicidade, que posteriormente filtram a publicidade que entendem que x utilizador vai achar interessante, e colocam ao dispor no nosso feed.

Isto já é algo bastante conhecido, este método de "advertising"; não diria que seja eticamente correto, mas é algo regulado e estipulado nos termos de privacidade de cada site, que cada um de nós aceita (sem dar muita atenção, muitas vezes). No entanto, esta troca de informação tem obviamente os seus limites. Como já referi, há um "contrato" que especifica o uso que os dados que fornecemos ao site irá ter (onde será utilizada, que tipo de fim terá, etc.).

É com esta premissa que quero abordar 2 casos distintos, bastante conhecidos: o escândalo "Cambridge Analytica", envolvendo o Facebook (agora denominado Meta); e, mais recentemente, o caso da expansão da plataforma TikTok nos Estados Unidos da América.

O escândalo "Cambridge Analytica", apesar de extenso e complexo na sua génese, não passa de um simples caso de fornecimento não-consentido de informação de utilizadores. O caso mais notório, e mais falado, envolve o Partido Republicano dos Estados Unidos da América: a empresa de consuloria Cambridge Analytica recolhia informação dos utilizadores, através do Facebook, e vendeu essa informação, primeiro ao candidato Ted Cruz (que na altura concorria contra Donald Trump pela liderança do Partido Republicano), e posteriormente ao próprio Donald Trump, para persuadir os mais indecisos a votar no seu partido, pondo em evidência, inclusive, em alguns anúnicios, as alegações de corrupção associadas a Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata, e do seu marido Bill Clinton (antigo presidente dos Estados Unidos). Também houve alegações desta empresa que a acusavam de interferir no referendo Brexit, mas acabou por não ser algo totalmente bem fundado.

Na altura em que o caso se tornou notório, já em 2018, o C.E.O. da Facebook, Mark Zuckerberg, chegou a ser ouvido no Congresso, onde admitiu lapsos nessa fuga de informação, e prometeu esforços para que tal informação não fosse partilhada de qualquer modo, insistindo que o Facebook iria trabalhar para que houvesse uma maior proteção dos seus utilizadores.

No que toca ao Tik Tok, plataforma com poucos anos de atividade, a investigação é um pouco menos fundamentada (também por ser uma investigação mais recente, possivelmente). O Tik Tok é suspeito de partilhar a informação que guarda dos utilizadores com o governo Chinês, com o intermediário sendo a ByteDance, empresa detentora desta app, que tem ligações a Pequim. O governo dos Estados Unidos alega que as preocupações vêm da lei nacional da inteligência da república popular da china, que estipula que "todas as organizações (...) devem apoiar, ajudar e cooperar com o Estado em matéria de inteligência nacional". Também se mostram preocupados com alguns dos algoritmos da app, temendo que estes manipulem a opinião de diversos temas.

Recuando umas semanas atrás, demos em aula um texto de Roland Barthes, onde o autor relatava um artigo que lera da revista "Match", sobre um casal de professores que fez uma viagem até África, levando consigo o seu filho bebé - Bichon. Todo o artigo é escrito de forma a enaltecer a atitude destes pais, o quão corajosos foram de levar consigo o filho para um ambiente tão hostil, no meio de uma tribo de "pretos" no coração de África. Todo o artigo, segundo Barthes, é escrito aos olhos de um racismo estrutural gritante. Uma discriminação infundada, sem qualquer explicação sobre o porquê de ser perigoso. A verdade é que ao longo da sua estadia, ninguém correu perigo de vida. O pequeno Bichon, ainda bebé e inocente, brincava junto das outras crianças da tribo. Isto para dizer que, apenas aos nossos olhos, é que esta experiência seria algo "épico" e digno de uma bravura inigualável. Somos pré-concebidos a pensar que uma tribo no meio de África consiste num conjunto de indivíduos bárbaros, que não sabem estar numa sociedade civilizada, que são perigosos para a pessoa "normal"; está implícito este contexto ao longo do artigo, até porque, tal como Barthes disse, sem este contexto, o artigo perderia todo o seu sentido. Seria apenas um conjunto de pessoas que viajou e foi conhecer outro conjunto de pessoas, que são diferentes, vivem de modo diferente, etc.

Ora, penso existir aqui um paralelismo entre a "moral" deste texto de Barthes e as duas situações que mencionei acima: o perigo iminente do Tik Tok, associado à partilha de dados de utilizadores, acaba por não ser muito diferente do escândalo do Facebook. Meios diferentes e fins diferentes, concerteza que sim, mas o fundamental, que consiste na partilha indevida destas informações, é bastante similar, e levado a cabo do mesmo modo. No entanto, um deles já foi alvo de propostas para ser banido em vários países, já há até leis que impedem membros do governo dos Estados Unidos de usar a app, na possibilidade de haver fugas de informação para o governo Chinês. A remota possibilidade de pensar que a informação retida pelo Tik Tok pode ir parar às mãos da República Popular da China e o seu tenebroso regime comunista é suficiente para se levar a cabo todas estas suspeitas por parte dos americanos, e consequentemente, o resto do mundo civilizado.

O Facebook, até à data, pouco ou nada aconteceu. Pagou uma multa, entre outras consequências que não afetaram muito a sua reputação a longo prazo. Está longe do pico de popularidade que outrora foi, mas continua a ser um gigante do Silicon Valley, e continua com o seu espaço na internet bastante solidificado. Houve, de facto, algumas melhorias notáveis no que toca às suas políticas de privacidade, partilhando menos informação do que na altura em que o escândalo aconteceu.

Faz-me crer que estas suspeitas e este clima de medo pelo Tik Tok, instaurado pelos senadores americanos, nada mais passa do que um dos vários casos em que o contexto geopolítico que difere as nações leva os países desenvolvidos e denominados "democráticos" a tomar medidas drásticas, receando o que estas nações podem fazer.

O pináculo deste rídiculo acabam por ser as preocupações de certos senadores no que toca à difusão de informação incorreta e "trends" perigosas para crianças, sobre os mais diferentes tópicos na plataforma do Tik Tok; algo que era recorrente também no Facebook, no pico da sua popularidade. Desde o "Desafio da Baleia Azul" até às pessoas que eram constantemente bombardeadas com informação errada, com artigos partilhados que geravam vírus, com todo o tipo de desinformação que é bastante comum em todas as redes sociais. Não é algo bom, e tem de ser combatido todos os dias, para se salvaguardar a credibilidade da esmagadora maioria das contas que zelam por essa integridade, sejam jornalistas, páginas, jornais, etc.

Também é verdade que o TikTok é altamente viciante em comparação com as outras redes sociais, graças à sua fórmula de pequenos vídeos sucessivos, que está aliás a ser copiado por todas as plataformas conhecidas (Instagram Reels, Youtube Shorts e ... Facebook Reels).

O facto do TikTok ser uma plataforma Chinesa levanta toda uma preocupação que seria algo impensável se a natureza da nação onde nasceu fosse outra. Se amanhã o TikTok fosse vendido a uma empresa estrangeira, o problema da desinformação e do conteúdo perigoso continuaria a existir; mas o facto de a informação ser (alegadamente) cedida àquele estado, e não ao Chinês, deixaria de ser uma preocupação, porque não interessaria se de facto essa informação fosse mesmo chegar ao novo estado onde a empresa estaria sediada; seria um país "pacífico" aos olhos do mundo desenvolvido. Tal como no texto de Barthes, ao retirarmos este contexto premeditado da narrativa do modus operandi da China, e estas ideias ou opiniões que podemos ter acerca do governo, a principal preocupação relativamente ao TikTok caíria por terra.