sábado, 31 de dezembro de 2022

Euromitologia

Em Mitologias, e em particular no último texto do livro, uma análise teórica do Mito, Roland Barthes descreve a ideia da nação como o mito fundamental, capaz de naturalizar a ideologia burguesa, no campo político. Para Barthes, o mito da nação é o cimento da aliança da burguesia com a pequena-burguesia e as classes intermédias.

No entanto, parece-me que na realidade contemporânea da Europa, o mito nacional foi parcialmente substituído pelo mito da cidadania europeia. Ele forja uma identidade (a identidade europeia) que se pretende apresentar como natural, nas palavras de Barthes, “des-politizada”. Ou seja, o mito retira a contingência histórica da identidade europeia e elimina os vestígios da sua fabricação.

A desmistificação é, aqui, relativamente simples. A identidade natural é a do ser-humano e todas as outras construídas. Mas, ao contrário da ideia de nação, a europeia incorre noutra contradição: é duvidosa a ideia de que o povo português, por exemplo, partilhe mais semelhanças culturais com os povos do norte da Europa do que com os povos do norte de África.

Resta perceber a motivação desta transferência da centralidade dos dois mitos. Penso que ela corresponde precisamente a uma característica essencial do mito, a conservação das relações sociais e económicas. A criação do mito da cidadania europeia permitiu a transferência dos poderes que pertenciam aos estados nacionais (soberania monetária, política orçamental, …) para entidades supranacionais (Banco Central Europeu, Comissão Europeia, …). As decisões estratégicas de desenvolvimento nacional (política agrícola, definição das taxas de juro, política industrial, …) que outrora pertenciam ao poder democraticamente eleito, onde existe capacidade do poder popular condicionar as escolhas governamentais, foram entregues, sem objeção, a entidades que não representam o povo europeu (BCE) ou cuja ligação democrática é insuficiente (Comissão Europeia).

À semelhança do mito da nação, é conservado o imperialismo, que se alia a outro mito, o do exotismo, e à lógica colonial, que se faz contra o estrangeiro, mas também, do ponto vista económico, contra certos países da própria União Monetária (em certas questões, os países periféricos funcionam como o Outro, o estrangeiro, aquele que é necessário domesticar e educar).

Os Pobrezinhos

Mafalda - Quino

A tira apresentada é retirada da banda-desenhada Mafalda, de Quino. Escolhi-a porque, à luz da teoria do mito de Roland Barthes, é um bom exemplo da desmistificação das ideias míticas. Neste caso, é nos apresentado um significante: o discurso de Susanita sobre a pobreza e um significado: a elevação moral do sujeito caridoso. Este primeiro sistema semiológico é na realidade um mito que Quino pretende rejeitar.

Segundo Barthes, para desmascarar o mito, apontá-lo e revelar a verdade não é uma técnica eficaz, porque o mito se irá apropriar deste novo discurso. Barthes propõe a criação de um novo sistema semiológico que, tal como o mito rouba a linguagem, deforma o discurso mítico. Para isso, o novo sistema deve transformar o signo mítico em significante: ponto de partido do novo sistema semiológico.

Creio que é precisamente esta a abordagem de Quino. O mito descrito é tornado significante e é criado um novo significado: o olhar paternalista sobre a miséria. Quino revela que o sentimento caridoso torna os pobres num instrumento de autossatisfação, que os infantiliza. Mostra que a caridade não olha para os pobres como cidadãos com os mesmos direitos. Ela pretende perpetuar a sua condição e não fornecer as ferramentas necessárias para a sua emancipação. Este olhar sobre a miséria serve apenas para justificar a posição social dos privilegiados e responsabilizar os de baixo pela sua condição.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

    No dia 22 de dezembro, os estudantes do Instituto Superior Técnico receberam um e-mail do seu presidente a anunciar o encerramento de um bar e de uma cantina no campus da Alameda, depois de acabar o contrato com a empresa que explorava as infraestruturas. Talvez em comemoração da quadra natalícia, este fecho vem acumular-se à entrada para obras da cantina social, inativa desde junho. A crise alimentar já vivida pelos estudantes, professores e funcionários irá piorar significativamente no início de 2023, numa altura já marcada pela subida generalizada dos preços, perda de poder de compra e agravamento das condições de vida. Como solução, o Conselho de Gestão, com o apoio da Associação dos Estudantes, apresentou um programa inovador de oferta alimentar – um Grab&Go financiado pela Galp, uma cadeia de barracas fast-food nos jardins da faculdade, e a valorização dos serviços de entrega da Glovo e da UberEats. Esta plano peca apenas pela sua falta de sarcasmo, podendo vir a ser uma boa piada. Falta aos intervenientes da decisão uma visão da alimentação como direito fundamental na vida de um estudante, cidadão e ser humano.

    A alimentação consagra-se como necessidade básica para o funcionamento de qualquer organismo vivo, que transforma os nutrientes do alimento em energia. O ser humano não se escapa, e ganha ainda com o longo processo de socialização a que foi sujeito desde os inícios da História. A alimentação tornou-se uma fonte de cultura, através do desenvolvimento de técnicas e tradições regionais, produzindo a riqueza da culinária que hoje observamos na açorda de uns e na açorda dos outros. Dito isto, uma sociedade de classes compartimentalizada tem outros desejos – a transformação da alimentação numa mercadoria, um produto consumível como outro qualquer, é uma tarefa imprescindível para o capital e para as estruturas que este cimenta. A precarização e a fome são efeitos irrecusáveis desta ideologia, consolidadas nas nossas cidades e nos nossos bairros. Num regime dito democrático, é dever de qualquer instituição de caráter público o combate à mercantilização desses direitos fundamentais. Uma universidade tem de ser capaz de oferecer um prato social saudável e acessível; um prato diversificado e consistente, que valorize a produção local, cozinhado em condições de trabalho dignas. Estas são demandas constantemente e deliberadamente esquecidas pelos órgãos de gestão das nossas instituições de ensino superior, em prol duma política virada para o lucro construída em conjunto com as empresas nacionais e transnacionais detentoras dos grandes monopólios. Uma realidade que, embora já antiga, se vem consistentemente a afirmar nos dias de hoje.

    Não irão faltar obstáculos à supressão dos problemas vividos pelos estudantes do ensino superior público em Portugal. Neste âmbito, todos ralham mas há sem dúvida quem tenha razão – os estudantes revoltados capazes de atacar a natureza dos seus problemas e transformar a sua realidade através da luta.

 

Pombos

Há uns dias, enquanto fazia o meu trajeto diário da faculdade para casa, reparei em algo que nunca tinha visto - ao longo de um cabo elétrico e de um muro, estendia-se um número enorme de pombos, que devia ultrapassar uma centena. Claro que já tinha visto pombos antes, mas nunca tantos assim num só grupo. 

Como vi isto à saída do metro, notei logo a semelhança entre aquela imagem e a da multidão de pessoas nos transportes públicos. Esta situação despertou-me a curiosidade para esta espécie, que até então só via como uma coisa banal e desinteressante.

Apesar de as pessoas (especialmente as que vivem em grandes espaços urbanos) repudiarem os pombos pelos mais diversos motivos, estes apresentam várias semelhanças com o ser humano, quer individualmente, quer na sua vida em sociedade. A nossa relação com este animal é já bastante antiga – o pombo era originalmente selvagem, mas, há alguns milénios atrás, o ser-humano domesticou-o, dando origem ao pombo-correio, que continuou a ser usado por muito tempo. Foi esta constante convivência e ligação com o Homem que deu origem ao pombo que conhecemos hoje.

Nós temos por hábito tratar os pombos como se fossem uma mera praga, mas parte da culpa também é do ser-humano. Quase tudo aquilo que eles comem vem, direta ou indiretamente, de mãos humanas, portanto, o seu cérebro desenvolveu-se de modo a conseguir entender e conviver connosco. Eles, tal como nós, têm uma ótima memória, transmitem conhecimento de geração em geração e aprendem por tentativa-erro, o que os ajuda, por exemplo, a saber qual a zona da cidade que costuma ter mais comida. 

A pesquisa e reflexão acerca desta espécie fez-me mudar de opinião e visão em relação à mesma. Cada vez que eu pensar que os pombos estiverem a ser sujos, barulhentos ou inconvenientes, vou-me lembrar que eles são apenas fruto da influência humana e que afinal não somos assim tão diferentes.


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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

União ou Consumismo?


Segunda-feira passada (dia 20) fui ao centro comercial Colombo para comprar os presentes que faltavam para os meus irmãos e como é óbvio, estava longe de ser a única pessoa que se lembrou de comprar prendas naquele dia.
Confesso que todo este “ritual” de dar e receber não é nada prazeroso para mim mas sinto-me na obrigação de participar e por isso, foi um dia preenchido por uma procura forçada de coisas inúteis para oferecer, como uma tentativa de comprar felicidade. A quantidade de gente no shopping, a andar dum lado para o outro, era absurda. O tamanho das filas era absurdo. Alguns com a pressa de despachar o que tinham por comprar, acabavam por ir contra outros ou tentar passar à frente nas filas. Isto é o espírito natalício e quem sou eu para o julgar? Na verdade, escrever acerca disto faz-me sentir bastante hipócrita porque também eu andei no meio daquele ambiente sobrecarregado pela pressão das prendas.
No final do dia, quando cheguei a casa e olhei para o que tinha comprado pensei, “Isto era mesmo necessário?”. Se não fosse o Natal, nunca teria comprado o que comprei, foi forçado e extremamente stressante mas por outro lado, precisava de ter algo para oferecer.
O ato de “oferecer” é bonito quando é espontâneo e/ou de livre vontade e sem duvida que para a maioria dos consumidores carregados pelo espírito natalício, o sentido de obrigação e de fazer "parecer bem", ultrapassa a livre vontade. Mas o Natal é isto? A união, bondade e todas essas coisas bonitas resumem-se a chocolates em formato de pai Natal ou bugigangas? Confesso que até noto um espírito competitivo entre os meus irmãos no que toca a comprar prendas.
Sim, o Natal é maioritariamente isto. O Natal é para gastar, alimentar negócios e estratégias de marketing, consumir… O homem da atualidade é facilmente atraído e comprado. Os objetos que ele pensa possuir, acabam por o possuir a ele. É o retrato da sociedade materialista e capitalizada. Eu, faço parte daquilo que critico, para muitos é inevitável.

domingo, 25 de dezembro de 2022

A Realidade dos Reality Shows

 Nos dias de hoje os programas de Reality Shows são algo que se tornou banalizado para muitos, mas com essa banalização também surgiram novos problemas.

Antigamente os participantes deste gênero televisivo não eram levados tão a sério como na atualidade, sendo vistos como apenas "burros", desempregados, pessoas que não têm o que fazer ou até mesmo analfabetos. Hoje em dia estes estereótipos estão bastante presentes mas não aparentam ter tanta força como nos anos de 2010, mas com estas novas ideias de concorrentes novos insultos e preconceitos apareceram e com estes novos conceitos podemos compreender o pensamento da sociedade.

Com certas conversas que tenho em certos momentos em família fico com a ideia de que os concorrentes destes programas são vistos como apenas atores que servem apenas como uma fonte de entretenimento e, por vezes, fico com a impressão de que se esquecem que nestes programas estão apenas pessoas reais com famílias e sentimentos. Esta falta de perspectiva causa uma grande falta de empatia, tudo o que estas pessoas fazem ou dizem é julgado ou falado, passam de bestial a besta e o seu próprio público causam guerras entre eles. Até mesmo ex concorrentes são capazes de criticar os atuais concorrentes por atitudes que eles próprios tiveram no passado, não sendo capazes de se colocar numa posição onde já estiveram, o que para mim acaba por mostrar como a nossa sociedade real funciona.

As pessoas utilizam estes participantes para espalhar o ódio que não é visto como correto, mas falar ou insultar alguém numa rede social ou numa conversa banal que participa nestes programas já não é visto como "falta de cortesia" aos olhos destas pessoas, pois, podem até mesmo não praticar estas atitudes com o próximo mas demonstram uma maldade que sentem pelos outros com "pessoas" que acabam por não ter em conta como reais. O modo como tratamos os participantes servem muitas vezes quase como um espelho, demonstrando o modo como muitos pensam dos outros mas por questões de imagem não partilham.

Na minha opinião acho que num geral existe muita maldade na cabeça de bastantes pessoas, que se sentem no direito ou simplesmente superiores, e que apesar de algumas pessoas se colocarem num local com bastante visibilidade não dá o direito a ninguém de ser completamente ofensivo e cruel, temos todos o direito de descordar com certas atitudes e opiniões mas é possível ser moderado no modo como falamos ou opinamos sobre um ser humano. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A cultura do consumismo no Natal

 O Natal é aquela época do ano que todos esperamos: os sorrisos nas crianças, as viagens para juntar toda a família, o enorme banquete da consoada… mas um sentimento bastante presente nesta época é infelizmente toda a pressão e a pressa para comprar as prendas perfeitas a tempo. Os centros comerciais transformam-se em mares de pessoas aos encontrões, os parques de estacionamento passam a ser um “campo de batalha” pelo próximo lugar livre, as lojas acumulam filas intermináveis… Toda esta confusão para que todos os amigos e família tenham um presente de Natal com uma etiqueta a dizer: De mim para ti.

A pergunta é: porque é que sentimos esta necessidade de perpetuar o consumismo especialmente nesta época do ano? O Natal não deveria ser sobre união e família? Estarmos todos juntos e oferecer companhia e bondade em vez de bens materiais?

A verdade é que cada vez mais se está a perder o verdadeiro espírito da época, as crianças pedem cada vez mais coisas mais caras e supérfluas: “Quero o novo iPhone para o Natal”, quando o telemóvel que têm é perfeitamente bom… enfim, como poderemos culpá-las? A culpa na realidade é nossa, que fomos habituando uma geração de que esta atitude é o normal.

O Natal costumava ser sobre enfeitar a casa e a árvore com a família, comer doces típicos incessantemente, abrir pequenas lembranças que faziam qualquer pessoa que as recebesse pelo simples facto de se terem lembrado de si. Hoje, ai da mãe ou do pai que não gastem centenas de euros a comprar as coisas caras que o/a filho/a pediu porque todos os amigos também as irão receber, ai deles que não percam dias inteiros em filas à procura daquela coisa específica, e se por acaso a prenda não for a pedida, ainda há a lata de reclamarem que não era aquilo que queriam… a cultura do consumismo e do materialismo nesta época já está tão intrínseca na sociedade que tudo isto é normal, e quem está mal é quem não conseguiu o iPhone11 para a filha porque devia ter ido mais cedo às compras.

Felizmente nem tudo está perdido, é claro que há muitas famílias que tentam manter o verdadeiro significado do Natal vivo, o que desperta ainda alguma esperança nesta geração, mas existe uma pressão tão grande de amigos e colegas, do tipo: “Ah só recebeste isso? Eu recebi tal e tal” e isto cria obviamente uma necessidade maior por parte das crianças de pedir mais e melhor, o que alimenta o consumismo. Não basta alguns tentarem combater este problema, porque os que o alimentam, transformam também quem tenta não o fazer.

Concluindo este desabafo, diria que é necessário apelar aos papás e às mamãs para que mostrem o verdadeiro sentido do Natal às crianças, para que mostrem que não é só iPhones e PlayStations, não é só alimentar a regra que se vê hoje em dia de crianças de 5 e 6 anos com tablets e computadores, mas sim família, amor, compaixão e união.

Comentário, de um videojogo, de Simone de Seauvoir

 

Nier: Automata é um videojogo que, entre outros aspetos, integra e apresenta ideias de filósofos na sua história. 

Um desses filósofos é Simone de Beauvoir, representada por um robô adornado de um grande vestido e adereços, sendo alguns desses adereços carcaças de robôs e androids. 

 

Simone luta contra a personagem principal, (um android), que o jogador controla, cantando e dançando durante a batalha, e quando ela se torna mais enfraquecida, ela descarta os seus adereços e luta de forma mais salvagem, até que a personagem que o jogador controla ganhe a luta e o robô seja destruído. 

 

Mais tarde, prosseguindo a história do jogo encontramos uma vila de robôs pacíficos, e nessa vila, podemos interagir com um robô que tem uma cartola preta na cabeça, que se chama Jean-Paul, que se refere a Jean-Paul Sartre. Jean-Paul não tem interesse em falar connosco então o jogador pode decidir falar com os seus seguidores. 

Esses seguidores que também são robôs que se aparentam com maneirismos e adereços “femininos”, como o robô Simone. Chegamos à conclusão que Jean-Paul também não se interessa pelos seus seguidores, e pouco depois, desaparece da vila e nunca mais o vemos. 

 

Prosseguindo na história do jogo, conseguimos ler um fragmento da memória do robô Simone. Este robô, igual a todos os outros, sem qualquer adereço, apaixona-se por Jean-Paul, no entanto, como já foi deduzido pelo jogador, ele não dá qualquer atenção a Simone. 

 

Simone, desesperada pela atenção de Jean-Paul, decide seguir a cultura humana, e extraiu dessa cultura que a beleza era a melhor forma de atrair atenção, e é a partir daqui que ela se começa a se generizar na direção feminina. Dizendo coisas como “Beauty is stylish accessories. Beauty is looking one’s best.” 

 

Com esperanças que, assim, Jean-Paul se interessaria por ela. Sendo mesmo isto inefetivo, ela levou a procura da beleza ao extremo, começando a matar androids e robôs, e tanto os consumia como os servia de acessórios decorativos do seu vestido pois foi convencida que fazer isto a tornaria mais bela. 

Este amor foi não foi correspondente e aqui acaba o seu fragmento de memória. 

 

Aqui podemos ver mais um caso da frase “one is not born a woman, but becomes one”, com o exemplo de Simone e dos seguidores de Jean-Paul, onde o robô, sem conceito de gênero, se transformam em mulheres pelo meio em que vivem. Aqui os robôs limitam-se a copiar os conceitos humanos. 


 

Especialmente no caso do robô Simone, que desesperadamente, seguindo as normas humanas dos gêneros, cometeu grandes atrocidades que custariam a vida de muitos androids e robôs. 

Fig 1 - Design do robô Simone 
 

A fuga da Mona Lisa

No verão passado visitei a cidade de Paris. Percorri a capital francesa visitando monumentos históricos e passeando pelos inumeráveis jardins, como o das Tulherias, onde imaginei que Roland Barthes e Simone de Beauvoir terão também passeado. Não pude deixar de ir ao Louvre, o maior museu do mundo, onde estão milhares de pinturas e esculturas da Vénus de Milo da Antiga Grécia, A Liberdade Guiando o Povo de Delacroix, As Bodas de Caná de Veronese, à célebre Mona Lisa de Leonardo Da Vinci.

Não me surpreendi com o facto de só conseguir observar esta última pintura a mais de dez metros de distância, todos eles percorridos por pessoas preocupadas em tirar a melhorar fotografia à obra. O produto final acaba por ser uma imagem na galeria dos telemóveis, igual ou pior a tantas outras espalhadas por toda a internet, para talvez uma posterior publicação numa das redes sociais. Ambiciona-se visibilidade e reconhecimento. Estes são alcançados com a publicação da fotografia tirada, através de visualizações, “likes” e comentários dos “seguidores”. Há um estímulo para o desenvolvimento da expressão do narcisismo. O significado distancia-se da pintura a óleo e recai na nossa própria imagem. Na verdade, naquele dia no museu do Louvre, poucos eram os que contemplavam verdadeiramente a Mona Lisa.

Em Ways of Seeing (1972), Berger expõe que uma linguagem de palavras e imagens chama-nos para onde quer que andemos, o que quer que leiamos e quem quer que sejamos. Estas imagens perseguem-nos para todo o lado, assombram os nossos sonhos. As imagens supõem um fim que se liga ao mundo e às suas constantes mutações. Há uma virtualização das imagens pelas redes sociais, uma transfiguração imagética, cujas origens remontam a uma fase onde a pintura a óleo se impõe primordial no mercado, ocupando as salas do mundo ocidental, até aos dias que correm atualmente, onde as imagens e toda a arte nos assome, sem que sejam remetidas para uma memória ou lugar específicos.

A arte nunca foi tão acessível a todos como hoje em dia. As incontáveis possibilidades de compra de arte e a proximidade do seu artista com o público tornaram possível esta acessibilidade, não só pela sua disponibilidade no mercado, como pela facilidade comercial em comparar preços, definir as melhores opções de mercado ou mesmo negociar com o próprio artista em questão. Deixou de haver uma singularidade de cada pintura no lugar único onde reside. Numa sociedade de consumo como a que vivemos, a Mona Lisa saiu do Louvre e foi multiplicar-se numa imagem onde pode ser um produto de uma publicidade, onde aparece numa capa de telemóvel, numa camisola, entre muitos outros e é assim diminuída pela sua reprodutibilidade. Os anos em que vivemos nunca foram tão propícios para a disseminação e aquisição de cultura. Em anos passados, as obras de arte repousavam em espaços de grande autoridade enquanto nos dias de hoje são replicadas em dezenas de formas e para os mais diversos lugares. Ainda que estejamos perante uma acessibilidade da arte cada vez maior estamos também a assistir a uma deterioração da mesma, porque a arte está cada vez mais a servir a publicidade com a finalidade exclusiva de vender.

 

Publicity turns consumption into a substitute for democracy. The choice of what one eats (or wears or drives) takes the place of significant political choice. Publicity helps to mask and compensate for all that is undemocratic within society. And it also masks what is happening in the rest of the world. Publicity adds up to a kind of philosophical system. It explains everything in its own terms. It interprets the world. The entire world becomes a setting for the fulfillment of publicity's promise of the good life. The world smiles at us. It offers itself to us. (Berger, 1972).

Somos assolados por imagens publicitárias que estimulam a imaginação e que pretendem interpretar o mundo à nossa volta e explicar tudo nos seus próprios termos. Vivemos numa sociedade onde nunca observámos tão pouco e onde nos contentamos em apenas sermos vistos.