terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Focault, sexualidade e "Scrub Daddy"

Todos os natais eu e a minha irmã temos sempre dificuldade em oferecer prendas aos nossos pais. É sempre aquela conversa de “o que é que achas que eles precisam?” mesmo sabendo que não precisam de nada a que o nosso poder de compra consiga chegar. 

Há pouco tempo abriram 3 lojas de uma cadeia europeia denominada de Normal. A marca diz “vender produtos normais a preços anormais”. Abriu uma na rotunda de Entre-Campos, mais tarde uma num dos centros comerciais do Saldanha e por fim outra no centro comercial do Campo Pequeno. Isto num curto espaço de 3 a 4 meses e tudo concentrado na zona das Avenidas Novas. Devo ter ido à de Entre Campos em setembro a pedido da minha irmã que queria muito ver a loja e, na falta de amigos com quem ir, escolheu-me a mim. 


Na altura a minha irmã reparou numas esponjas que, segundo ela, eram virais no TikTok. Tinham a aparência amarela de uma esponja normal para lavar a loiça, mas em formato de smile: “Scrub Daddy”. Confesso que a loja me deixou extremamente desconfortável por ter luzes brancas muito fortes e ser quase um labirinto onde temos apenas um caminho a seguir, por isso nem liguei muito a esse produto e apenas agradeci quando saímos. Senti que aquela loja era quase a materialização do capitalismo.


Chegando então a aproximação do Natal a minha irmã lembrou-se que podíamos oferecer aos nossos pais aquelas esponjas e informou-me que existia também a “Scrub Mommy” que era amarela de um lado e rosa do outro e o desenho não era exatamente o mesmo, tendo a versão feminina um laço na cabeça. Ou seja como o nome diz “Scrub Daddy” para o meu pai e “Scrub Mommy” para a minha mãe.

Como não fazia ideia do que presentear os meus pais com, aceitei de bom grado a ideia da minha irmã. No entanto, veio-me logo o seguinte pensamento à cabeça “Eu vou dar esponjas aos meus pais no Natal”. Ri-me para mim mesma e pensei logo que nunca me passaria isso pela cabeça. Talvez os fizesse rir também. Ao mesmo tempo, veio o me à cabeça o quão estranho seria se lhe oferecesse duas esponjas normais das que se vendem nos supermercados. Certamente não iam gostar e achar que era uma piada de mau gosto ou pelo menos não era algo que os fosse fazer rir.


Foi aí que fiz a associação com o texto de Michel Foucault, Poder e Sexualidade de que falamos em aula. Claramente a compra destas esponjas foi influenciada pela segmentação do produto a diferentes consumidores. Como já referi, a probabilidade de oferecer uma esponja que não seja segmentada pelo género era muito mais pequena, para não dizer nula.


Pelos vistos as distinções de género também se fazem nas esponjas para a cozinha…

 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Socialização na Infância

O progresso da tecnologia tem mudado consideravelmente a vivência das crianças. O bem-estar, e o conforto, das nossas sociedades modernas não têm precedentes, por isso, conclui-se que a infância de hoje é a melhor da nossa história.

De um modo geral, esta afirmação está correta. Vive-se mais tempo, com mais segurança e cada vez com mais luxos. Mas estará mesmo tudo melhor? Embora os dados sejam importantes para analisar e refletir sobre o mundo, eles não mostram tudo. 

A título de exemplo vamos olhar para a socialização na infância. (Como se mede o grau de socialização de uma criança?). Não existe nenhuma forma de medir e comparar este indicador. É uma análise subjetiva, e a meu ver, as crianças de hoje estão piores.

Para chegar a esta conclusão basta, por exemplo, olhar para os recreios da nossa escola. Os recreios, são parte fundamental no processo de integração do indivíduo na sociedade, constrói-se relações, aprendemos a estar em comunidade etc. O que se vê hoje nos recreios é uma invasão dos telemóveis, o contacto interpessoal é substituído por um meio digital. Há uma alienação da criança para com os seus pares, as brincadeiras, que deviam ser a prioridade, é visto como algo secundário que é facilmente substituído por um ecrã.

Apesar de todas as melhorias, o que se observa hoje é uma regressão na socialização das crianças. Temos de tomar medidas de modo a reduzir a dependência dos ecrãs nas nossas escolas.


Perda de Memória e Cobardice

Pensamentos em espiral, a sua causa. 

Parece-me que a doença de Alzheimer pode ser uma espécie de insanidade. Ou, se não for Alzheimer, então o que quer que seja que acontece a muitas pessoas quando se aproximam da morte e perdem a memória (talvez a doença de Alzheimer seja diferente). Se eu tiver razão, então este fenómeno deve estar a aumentar. 

Penso que há duas explicações para o seu aumento nas últimas décadas. A mais comum é o facto de vivermos mais tempo. As pessoas mais velhas perdem a memória e temos mais pessoas idosas. A segunda é o facto de ter entrado na nossa alimentação diária algo que não era saudável e que não existia antes: o alumínio é um candidato popular neste caso. 

Estas causas podem ser fatores contributivos, não sei. Mas o que eu sei é que o entretenimento incessante e de baixa qualidade também tem de ser mau. O entretenimento sem sentido, rápido e arrastado tem de estar a minar a capacidade do homem de se "concentrar" e, por conseguinte, de se "lembrar" ou mesmo de "ser" ele próprio.

A incapacidade de nos focar, a.k.a. cobardia, faz com que um "homem" seja menos homem. 

Penso que as pessoas vão para o entretenimento como um bêbado vai para a garrafa: a dor que estão a abordar é a mesma dor. Esta dor tem a ver com a consciência da mortalidade. É a mesma dor que provoca a cólera e que, quando é verdadeiramente abordada, pode produzir um Aquiles. Nós não a abordamos. O entretenimento de baixa qualidade é apenas uma diversão. 

Inventámos formas novas e inteligentes de nos distrairmos desta dor, por isso é lógico que sejamos mais incapazes de enfrentar a morte do que antes - os nossos cérebros podem estar mais "fracos". 

Tenho a certeza de que o terror deve ser bastante grande na velhice e pode levar a mente de uma pessoa a circular constantemente em torno do facto concreto da sua mortalidade. Este círculo pode destruir lentamente e depois rapidamente as ligações e memórias mais básicas, perecendo a mente antes de a morte perecer os membros.

Já vi um homem que sabia que ia morrer em breve tentar ser alegre. Estava a ficar louco. Não era uma pessoa que perdesse a memória, mas eu via que ele estava a perder a memória no final. Se ele tivesse começado a ter medo da morte mais cedo e sentisse esse medo durante mais tempo, penso que teria perdido a memória com o passar do tempo. Acrescento ainda: o medo da morte acompanhado de dor deve ser mais difícil do que apenas o medo da morte. 

Presumo que o entretenimento de baixa qualidade (e a publicidade) que nos aflige hoje em dia nos torna menos conscientes de nós próprios e menos capazes de resistir à tendência dos pensamentos de entrar numa espiral fora de controlo. 

Concluo dizendo que gosto da ideia de que a coragem é necessária para o foco, que o foco é necessária para a memória e que a memória é necessária para que exista um "eu".

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O papel de Greta Gerwig no combate ao patriarcado

    Laura Mulvey, no seu texto "O Prazer Visual e o Cinema Narrativo", explora as normas "estabelecidas" da sétima arte, focando-se em grande parte na objetificação da mulher, que cai, muitas vezes, para o lado estético do filme. O espetador vê o filme na ótica do protagonista masculino, com um olhar hegemónico perante as personagens femininas.

O papel da mulher é frequentemente subvalorizado, com grande ênfase no desejo visual do protagonista masculino, que acaba por, direta ou indiretamente, perpetuar as normas sociais de género. Este patriarcado enraizado na indústria do cinema é bastante notório se juntarmos os inúmeros "close-ups" de partes intímas dos corpos das personagens femininas, no fundo todo a parte que envolve o chamado "fan service" (termo muito associado à indústria japonesa de animação - animes - que intencionalmente adiciona estes "close-ups" intímos, pelo simples objetivo de "entreter" o espetador).

Greta Gerwig, uma realizadora de cinema contemporânea, teve o seu 2023 marcado pelo êxito de bilheteiras que foi "Barbie". Um sucesso, aclamado tanto pela crítica como pelo público no geral, que, no fundo, não fala exatamente sobre a Barbie em si.

O enredo passa-se no mundo das Barbies, é "controlado" por Barbies, e estas de facto tomam grande controlo do ambiente que o espetador observa. No entanto, o filme leva-nos ao encontro precisamente deste patriarcado que é vivido no mundo real, onde Ken - o acessório de Barbie - tem um papel meramente expositivo; o tal lado visual, que é aplicado na indústria cinematográfica às personagens femininas pelos personagens principais masculinos, é agora invertido. As barbies têm personalidades, carácter desenvolvido, e tomam grande parte do tempo de exibição do filme, enquanto que os Kens são reduzidos à sua beleza e, até certo ponto, ao "comic relief" de algumas cenas do filme.

O filme acaba por desenvolver toda uma história à volta deste tema (Ken vai ao mundo real, vê como o patriarcado funciona, e decide implementar isso no mundo das Barbies), mas a ótica que quero abordar neste texto é precisamente a posição de destaque que Greta decide dar às Barbies. É um filme que começa e acaba com estas personagens femininas, é um filme que lhes dá o carácter que muitas vezes não foi tido em consideração noutros filmes.

Greta Gerwig é, aliás, reconhecida por este tipo de afirmações. "Lady Bird", de 2017, retrata a vida de uma adolescente com problemas de identidade, num meio bastante conservador. A abordagem a este filme é extremamente sensível, centrando-se, acima de tudo, nas experiências da personagem principal e nas suas dúvidas em relação à pessoa que quer ser. Também este filme é um excelente exemplo da realizadora a tentar quebrar normas numa indústria que parece não querer avançar. Cada vez mais há a consciencialização das mulheres, e do papel igual que deveriam ter em relação aos homens, e no entanto, continua-se a questionar se os maiores êxitos de bilheteiras passam, sequer, no teste de Bechdel (filmes blockbuster como "Pacific Rim" (2016) ou o primeiro volume dos "Avengers" (2012), por exemplo, não passam).

O prazer "voyeurístico" de que fala Laura Mulvey é quebrado em quase todos os sentidos em trabalhos de Greta Gerwig. É tempo de outros cineastas seguirem os mesmos passos.




terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Desafios e Reflexões

Decidi regressar aos estudos aos 25 anos, abraçando a oportunidade de frequentar a Faculdade de Belas-Artes (FBAUL). Inicialmente, encarei a decisão com otimismo, mas ao longo do percurso académico, deparei-me com nuances que me levaram a uma reflexão crítica sobre o estado do ensino artístico.  

O retorno à vida académica não representou uma dificuldade significativa, contrariando a perceção comum. No entanto, as expectativas iniciais encontraram obstáculos, revelando lacunas no sistema educativo. A primeira desilusão surgiu ao constatar uma abordagem conservadora e antiquada por parte da faculdade. Num mundo onde a arte se expande para além dos limites tradicionais, a FBAUL parece resistir à evolução contemporânea, optando por uma excessiva teorização e negligenciando a integração com o mundo digital.  

A dicotomia entre o mundo contemporâneo e o digital emerge como ponto fulcral. À medida que as expressões artísticas transcendem as fronteiras convencionais, a faculdade parece revelar hesitação em abraçar essa transformação. A necessidade de uma abordagem mais dinâmica e integrada, combinando o melhor de ambos os mundos, torna-se evidente para preparar os estudantes para os desafios presentes e futuros. 

A interação social revelou-se igualmente desafiadora. Colegas, libertos de dois anos de quarentena, demonstram uma autoconfiança por vezes desmedida, resultando em conflitos de opiniões infundadas. A falta de conhecimento social e de uma base sólida para a troca construtiva prejudicou a dinâmica colaborativa esperada num ambiente académico.

Penso que o meu percurso na FBAUL tem sido uma mistura de satisfação e desilusão. Embora reconheça os aspetos positivos do meu regresso aos estudos, é crucial questionar práticas educativas que não acompanham as exigências do mundo contemporâneo. A procura por uma abordagem mais inovadora e evolutiva emerge como uma necessidade premente para garantir que a experiência académica na Faculdade de Belas-Artes seja verdadeiramente enriquecedora e preparatória para os desafios do futuro.

domingo, 17 de dezembro de 2023

O Mundo de Belas Artes: Uma Opinião

 


Arte (ar·te). A utilização consciente da habilidade e da imaginação criativa. A expressão ou aplicação da capacidade criativa e da imaginação humanas, produzindo obras que devem ser apreciadas principalmente pela sua beleza ou poder emocional. A arte tem vários ramos criativos, como pintura, música, literatura, desenho, escultura, dança, design e entre muitos outros. 

 

“A Licenciatura em Belas-Artes é um curso de graduação em que os estudantes aprendem sobre a história, as competências, a metodologia e as indústrias associadas à sua área artística de eleição.”

Indeed


Muitas crianças que nascem com um talento para desenhar ou que desenvolvem esse gosto e habilidade ao longo dos seus anos, acabam por se matricular em cursos de artes no ensino superior. Mesmo que algumas dessas crianças, que agora são jovens-adultos, acabem por seguir cursos artístico em belas-artes, não significa que todos queiram ser “Picassos”. O mundo está a evoluir e consequentemente o mercado de trabalho também. Novas oportunidades de empregos surgem e o mercado artístico artesanal acaba por ser substituído pelo mercado artístico digital. Tal como o mundo e o mercado de trabalho, as escolas e faculdades de artes ou belas-artes também devem evoluir. Um fotógrafo de moda tem tanto direito em ser artista, como um fotógrafo contemporâneo. Um realizador de cinema tem tanto direito em ser artista, como um artista de vídeo. Um produtor de som tem tanto direito em ser artista, como um artista de som.

Umas pessoas podem perguntar “Se queres seguir animação (por exemplo), porque é que estás numa faculdade de belas-artes e não numa faculdade específica dessa área?”, mas o que muitos não sabem é que há faculdades de belas-artes, como a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), que têm cursos com saídas profissionais em animação, jogos (contudo, a saída profissional em jogos foi retirada no fim de 2023), som, fotografia, cinema, entre muitos outros. Outras pessoas podem dizer “Se queres trabalhar numa empresa e não por conta própria como artista, porque é que estás numa faculdade de belas-artes?”, e novamente, faculdades como a FBAUL, deixam claro, na página dos cursos disponíveis na faculdade, que os alunos terminam os cursos com capacidades e habilidades para trabalhar em equipa.


MULTImédia deve conter diversas disciplinas da área digital, tal como som, jogos, programação, websites, música, animação, modelação 3D, vídeo-arte, cinema, fotografia artística, fotografia comercial, aplicações, realidade virtual, projeções, desenho digital, entre muitas outras áreas. Porém, eu só experienciei fotografia artística, vídeo-arte e muito pouco a área de som, mas sempre no contexto de ser uma artista no mundo da arte. Não só os alunos devem aprender a história do cinema, da fotografia, do som, e das outras áreas; aprender a utilizar propriamente os equipamentos e trabalhar em equipa; como também os alunos devem aprender a ter uma mentalidade artística, saber criar conceitos inovadores e únicos e a trabalharem por conta própria.

 Um bom balanço entre os dois mundos seria o ideal. Nos dias de hoje, as faculdades de belas-artes deviam permitir que o aluno experienciasse a sua arte de eleição no mundo artístico e no mundo empresarial. Desta forma, os alunos podem perceber que tipo de arte e que área artística é que gostariam de seguir, em vez de serem forçados a ser um “Van Gogh modernizado”. Sinto que o curso de Arte Multimédia é um curso muito pobre e com muito pouca carga horária, em comparação aos outros cursos. O curso devia conter mais disciplinas ligadas às diferentes áreas da multimédia, e não conter disciplinas condicionadas aos outros cursos que a faculdade oferece, que não têm nada a ver com multimédia.


Infelizmente, vou terminar este ano a licenciatura em Arte Multimédia sem ter experienciado nem perto de metade das áreas da multimédia, nem sem saber trabalhar em equipa, tal como está descrito no site do curso. Vim para este curso para poder enriquecer o meu conhecimento na área da multimédia e o curso não foi o que eu esperava que fosse. Esperava muito mais da FBAUL, uma faculdade de prestígio. Não sinto que o meu conhecimento sobre a multimédia foi aumentado, não sinto que estou preparada para o mercado de trabalho e não sei o que irei seguir com a minha licenciatura.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O universo do pixo

 




    Com origem em São Paulo, Brasil, nos anos 80, o pixo é uma linguagem urbana com caráter anarquista, onde ela possui seu próprio vocabulário e é utilizada tanto como uma linguagem secreta quanto como um símbolo de resistência. Por influência punk, o pixo tem como primeiras inspirações as capas de discos de heavy metal, que também são graficamente inspiradas nas runas anglo-saxônicas. É fascinante ver como um alfabeto com milhares de anos foi adotado pela comunidade urbana de São Paulo.

 

"Arte como crime, como arte"

 

   Embora alguns considerem o pixo como uma forma de vandalismo, outros o veem como uma expressão autêntica e crua da cultura urbana brasileira. Essa prática tem raízes profundas nas periferias das grandes cidades, muitas vezes associada a jovens que buscam visibilidade e uma maneira de deixar sua marca em um ambiente urbano que muitas vezes os exclui. O pixo é, para alguns, uma maneira de reivindicar espaço e a sua identidade. Contudo, a controvérsia em torno do pixo reside na sua natureza muitas vezes ilegal e na destruição de propriedade pública e privada. Isso gera debates sobre os limites entre a expressão artística legítima e a necessidade de preservar o patrimônio e a estética urbana.

 

Na minha opinião, o controle do pixo é insensato. Ele é uma manifestação contínua dos jovens marginalizados e um ato anarquista. O pixo está vivo e acompanha a cena urbana ao longo do tempo, sendo a prova de que a arte e a criatividade humana vão além das convenções de uma galeria e da legalidade. Ao caminhar em uma cidade onde a cena urbana está tão viva esteticamente, pode não ser a visão mais convencional e agradável, mas é uma cidade onde, apesar das graves diferenças sociais, a resistência fala mais alto.

 


                                                      







quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O valor dos objetos

  Tal como exposto em aula, Marx defendia que os objetos têm um valor de uso e um valor de troca, realçando a diferença entre a Natureza (a coisa em si e o seu valor de uso) e a cultura (a coisa como mercadoria e o seu valor de troca). Uma coisa transforma-se em mercadoria quando existe social e culturalmente, e está no mercado, podendo ser comprada e vendida.  

 Isto fez-me refletir sobre o valor pessoal e sentimental que depositamos nos objetos. Um objeto banal pode tornar-se valioso, não pelas suas qualidades ou características propriamente ditas, mas por causa de quem se relaciona com ele, ou seja, o valor do objeto pode ser ditado pela pessoa que o observa e consome. Ao depender mais de quem interage com o objeto, do que do objeto em si, o seu valor é independente do valor monetário, e na minha opinião, é mais valioso e profundo: é o valor de estar vivo. Uma carta de amor, uma folha de outono, os bilhetes de comboio de uma viagem que já se fez. É aí que estamos nós, as nossas memórias e vivências. O mundo interior de cada pessoa constitui uma teia imensa e única de associações, memórias e vivências, que resulta numa relação diferente de cada um de nós com cada objeto. As pessoas que conhecemos e de quem gostamos, os lugares que visitamos, dias e momentos marcantes ficam associados a determinados objetos.

 A cultura é o que é partilhado, o que é humano. E para mim os objetos mais valiosos não são os mais caros, de marca ou de edições limitadas. São os que estão ligados às vivências que fazem de mim quem sou. Que me transportam ao passado, a dias, a pessoas, a experiências. Aqueles que sei que vou encontrando sem ter de os procurar, os espontâneos, aparentemente banais e desinteressantes, porque são um resultado da vida a acontecer.

 Se não existissem determinadas convenções sociais e culturais, valorizaríamos as coisas que valorizamos? Se não fossemos condicionados desde crianças a considerar determinadas coisas boas, importantes, necessárias ou valiosas, quão diferentes seriam os nossos critérios e hábitos de consumo e a nossa relação com os objetos?

Será que sentiríamos a vontade de consumir tão incansavelmente?

Será assim tão necessário comprar um telemóvel novo cada vez que há uma nova atualização ou um modelo mais recente? O consumo desenfreado apoia-se na crença de que necessitamos sempre de mais e de melhor. Mas essas necessidades, apesar de se apresentarem como tal, são falsas, e não devemos deixá-las controlar-nos. 

 Na minha opinião, o consumo desses objetos não deve ditar a nossa vida. É importante que cada um de nós tenha consciência dos seus gostos e preferências, e que não se deixe levar pelas últimas modas e tendências, consumindo indiscriminadamente tudo o que nos é publicitado. Não é preciso ter objetos caros, nem de marcas de luxo: por vezes as coisas mais pequenas trazem consigo maior significado, se estivermos atentos a elas, e não são as que nos são vendidas mas as que construímos ao viver.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Sunset Boulevard

Esta terça-feira passámos no CineFbaul o filme Sunset Boulevard, de 1950, realizado por Billy Wilder. Apesar de já ter tido contacto com o filme há alguns anos, nunca o tinha visto na sua totalidade. Na verdade, este existe no mesmo universo de Mulholland Drive, o da produção cinematográfica e das aparências enganadoras de Hollywood. O curioso é que ambos os filmes têm por título uma rua de Los Angeles, possivelmente o de David Lynch em referência à obra prima de Wilder. Vários temas de Sunset Boulevard são ecoados em Mulholland Drive, a loucura da atriz, num, já ultrapassada, no outro, sem sucesso; a sombra da velha Hollywood, tanto a do cinema mudo como a da época de Wilder (anos 40 e 50); uma relação amorosa codependente em que uma das partes tenta controlar e possuir a outra. 
 Sunset Boulevard partilha esse ambiente insólito e macabro com o filme de Lynch, contudo, naquilo em que um é moderno, o outro é pura intensidade operática. Gloria Swanson (Norma Desmond) encanta o espectador com a sua teatralidade desmedida, com as suas expressões do cinema mudo, com os seus gestos grandiosos, com a estranha excentricidade e glamour de uma estrela decadente. O facto de o filme misturar a ficção com a realidade sem pudor, pondo antigas estrelas do cinema mudo a fazerem de si mesmas (Buster Keaton como companheiro de jogos de carta de Swanson), integrando no enredo factos biográficos dos próprios atores, gera uma sensação de veracidade que tanto repela quanto atrai o espectador. A personagem de Norma torna-se, além de fascinante, digna de piedade (o mesmo acontece com Diane em Mulholland Drive), no seu narcisismo enlouquecido encontramos uma humanidade surpreendente. Ela quase que é mais honesta nas suas convicções alucinadas do que o jovem argumentista Joe Gillis. 
 O filme transporta-nos para um mundo de ilusões e de valores morais questionáveis, entre a vontade de Norma Desmond de comprar a juventude de Gillis e a iniciativa do próprio em compactar com a sua prostituição. Esta relação de poder serve de analogia ao sistema cinematográfico, que usa a imagem do ator e o descarta quanto este já não lhe serve, enquanto ele se agarra fervorosamente a essa mundo indiferente.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Laringite, entre outras

        Há umas semanas atrás fiquei doente. Isto não foi algo inesperado ou surpreendente para mim, que habito este corpo desde que nasci. Com a promessa do inverno, a doença vem certa com o frio, e com as comodidades de uma laringe disfuncional. Mas desta vez foi diferente. 
    
    Fiquei doente quando fui a casa. 
    


    Conta o meu pai já ter visto o rio Cávado passar quase que por cima da ponte medieval, em Barcelos, cidade localizada na província do Minho. Lá nasci, fiz-me gente, e vivi sempre (sem nunca sequer ter pintado por cima as paredes que risquei com caneta quando pequena) até aos meus dezoito anos. Gostava de dizer que ainda lá vivo, mas não sei dar termo à situação de alguém que vive a outra metade do ano num sítio que não lhe pertence. 
 
    O frio em Lisboa é diferente. Cá não vemos a condensação da respiração e não se vê a gente ao alvorecer - quando o sol ainda não é mais que uma lâmpada no céu - com garrafões de água fria para descongelar os vidros dos carros, que por muitos lençóis e tecidos que se usem para agasalha-los como a um filho, o frio da noite nunca perdoa. Cá não há abundante humidade, as portas de casa não incham, e o frio não chega nunca aos ossos. Percebi então, enquanto explicava à amável farmacêutica da Farmácia de Santo Amaro os acontecimentos que levaram os meus lábios a rebentar por completo, o quão ingénua fui.
    
    Fiquei doente porque fui a casa. 


    A realização agrediu-me. O meu corpo acolheu Lisboa e tomou-a como casa. Duma forma insensível e cruel, sem levar os meus sentimentos em consideração, rejeitou Barcelos. Choque térmico, menina. 

    Vi-me sem casa, inquilina da terra de ninguém. Em Lisboa não me revejo, e em Barcelos, esgoto-me. Passei a semana subsequente embrulhada em cachecóis e numa tristeza sincera, à procura das respostas: Somos onde estamos, ou donde vimos? O que é a casa?
    
    Numa das aulas falamos d’O Homem Unidimensional, de Herbert Marcuse. Marcuse fala sobre as falsas necessidades, o que me remeteu para a obra de Simone Weil, A Necessidade de Raízes (1949), onde são abordadas as verdadeiras necessidades. No livro, Weil defende a discussão não só das necessidades do corpo (comida, água, etc.), mas também as da alma (ordem, obrigações, responsabilidade, igualdade, liberdade, hierarquia, raízes, afeto e valores espirituais) como sendo tão importantes quanto as primeiras para a contribuição do bem estar do indivíduo. 
    
    Percebi e senti fortemente o que Weil explica na sua obra. O corte com as minhas próprias raízes e a confirmação dessa própria separação por meio de uma reação física e tangível fez-me sentir deslocada de mim mesma. 
    
    Casa não é onde quero ou tenciono pertencer, é onde é necessário estar. Sou Barcelos e Lisboa, sou todas as cidades que visitei e todos os quartos onde já dormi. Mas pertenço onde reconheço e me relaciono com as pessoas que me rodeiam, onde a paisagem muda com as estações e cresce comigo.

Anúncios de automóveis


Em Portugal, a cultura idealiza a compra de automóveis novos e caros, como um sinal diferenciador daqueles que pertencem à classe média/alta. Até os mais jovens, preferem investir a maioria das suas poupanças num BMW a crédito, do que em educação ou planos a médio longo prazo. Tornou-se o padrão ser dono de um BMW, Mercedes-Benz ou Audi, e ter SUVs altos e luxuosos, ainda que não façam qualquer sentido no contexto profissional e familiar em que a grande maioria das pessoas se inserem.

Mas a culpa é principalmente das marcas. De um lado, quando vemos um anúncio, podemos tomá-lo como uma forma normal de anunciar um lançamento de um novo produto de marcas que têm mercado em Portugal. São anunciadas funcionalidades e inovações, e o público fica a saber de que dada marca passou a comercializar dado produto. Mas por outro, as marcas tendem a retratar uma realidade desejada e luxuosa, e ao longo dos anos fizeram com que se associe inevitavelmente a posse de um automóvel com ser bem-sucedido e bem visto. A verdade é que adquirir e manter uma viatura de 50.000€ não só não é sinónimo de sucesso, nem tão pouco inteligência, já que na grande maioria das vezes supera, por muito, aquilo que seria o "necessário". Na grande maioria dos casos é um investimento descabido, e que tornou os padrões de vida alvejáveis dos portugueses mais irrealistas e materialistas. Além disso, a sociedade dá prioridade à estética em função da funcionalidade, e as marcas lucram com isso. Este desejo insaciável de se sentir poderoso e prestigiado, é potenciado pela manipulação do público alvo, aludindo àquilo que desejam ser, e moldando esses mesmos desejos. Isto leva a um aumento do incentivo para comprar melhor e mais recente, e as marcas tiram proveito da obsolescência programa embutida nos seus métodos para que essa compra se torne periódica e banalizada.

De certa forma, a ideia não foge muito à de Roland Barthes, que no texto "retórica da imagem" critica também uma publicidade, que embora seja de outro tipo de produto, utiliza de igual forma estímulos e manipula o meio em que se insere o produto para criar uma imagem apetecível e de que esse produto é melhor que os demais. Esta ideia de que um produto muda substancialmente a nossa forma de viver, e que nos faz sentir o luxo e o poder, é uma retórica frequentemente usada pelas marcas automóveis através destas mensagens sublimes e elementos visuais nos vários anúncios e publicidades com as quais somos bombardeados por nos meios de comunicação.

Faz-me alguma confusão da facilidade com que as marcas o fazem, e com que o público adere. Sendo eu um fanático por tudo o que tenha motores, parece-me completamente ridícula a ideia de comprar uma viatura num stand, com 0 quilómetros feitos, a menos que pudesse fazê-lo 10 vezes com as poupanças que tenho. Todos os dias vejo carros novos, usados para fazer deslocações de poucos quilómetros, e questiono-me se realmente era necessário fazê-lo num carro tão caro, ou tão recente. Muitos dos jovens da minha idade ambicionam e elogiam quem compra um carro novo. Mas será que é tão elogiável? Na minha opinião, não. Gostava que se dessem outros usos às fantásticas produções visuais usadas para fazer anúncios com expectativas enganosas e irrealistas, em conteúdo informativo, consistente com a realidade dos portugueses.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Rhythm 0

Há muito que me questiono sobre qual a verdadeira natureza do ser humano. Será que nascemos instrinsecamente maus ou são as circunstâncias em que vivemos que nos moldam?

Aristóteles discute que o Homem é um animal de natureza social, concebido para properar na vida em comunidade enquanto que Hobbes entende o Homem como um ser individualista, egoísta ao ponto de ter como único interesse o "eu" e os seus desejos. Resumidamente, no modelo político criado por Aristóteles baseado na sua análise da natureza humana, o Homem é essencialmente bom, um ser político que trabalha para o bem comum, da sociedade e, portanto, o Estado surge como uma extensão da comunidade, como um meio de aplicar a razão para o alcançar do bem comum. Para Hobbes, por outro lado, o Homem é cruel e está naturalente inclinado para instigar conflitos e guerra e o Estado, a figura de poder, dada a natureza violenta do ser humano, surge como algo necessáriao para manter a ordem.

São situações como a perfomance Rhythm 0 de Marina Abram que me fazem duvidar da tese de Aristóteles. Em Rhythm 0, Marina submete-se à vontad do público ao longo de 6 horas. Durante essas 6 horas, a artista diz responsabilizar-se por todo e qualquer ato do público, oferecendo-lhes o seu corpo como objeto e disponibilizando-lhes uma série de outros objetos desde rosas e batons a facas e pistolas para que utilizem nela. Apesar de nas primeiras horas o público permanecer relativamente pacífico, com o decorrer do tempo, membros da audiência começam a tornar-se mais ousados, a espetarem os espinhos das rosas na sua pele e a beberem o seu sangue, chegam até mesmo a apontar uma arma carregada à cabeca de Marina, no entanto, apesar das provocações, a artista não se mexe.

Violência, assédio e humilhação foram algumas das situações às quais a artista foi submetida quando entregou o seu corpo à audiência. No entanto, quando passadas essas 6 horas a artista se começa a mexer e reganha a vida para deixar de ser um objeto, o público dispersa-se, foge.

"O que retirei desta situação foi que nas tuas performances podes ir o quão longe quiseres, mas se deixares as decisões serem tomadas pelo público, podes ser morto." (Marina Abramovic)

A performance revela uma alienação perante o outro, de humano para humano, a necessidade de intimidar, de se sentir superior através da instigação do medo.

O público, quando apresentado com a possibilidade de instigar violência, sem serem responsabilizados pelos seus atos, aceitaram-no. Será que aquilo que nos impede de agir de acordo com os nossos impulsos mais primitivos, mais violentos é a nossa moral ou o medo, o medo de sofrermos as consequências dos nossos atos. Será que se a justiça não existisse, se não fôssemos julgados pelos nossos atos, conseguiriamos, segundo Aristóteles, viver pacificamente em comunidade, manter a ordem?

Aquilo que nos distingue essencialmente dos animais é a razão, a consciência, a capacidade de mantermos os nossos impulsos sob controlo, de suprimirmos o nosso instinto mais violento, mas o impulso mantêm-se, está lá.

Rhythm 0 revela-se como que um estudo, uma análise da mente humana e, talvez, chegue até mesmo a confirmar que a crueldade parece estar inscrita no adn humano e que, segundo Hobbes, o Homem nasce, de facto, mau.

Serão as guerras mesmo evitáveis quando estas existem há tanto tempo quanto a espécie humana, quando estamos desde a pré-história a lutar por poder, por status e pela necessidade de nos elevarmos face a outrém?











sábado, 9 de dezembro de 2023

Filmar ou aproveitar o momento?

Figura 1: rookie. (20 de maio de 2017). Twitter. https://twitter.com/sewuigi/status/865709549193441281


Ultimamente quando vou a concertos, apercebo-me de como a forma de os viver e aproveitar mudou nos últimos tempos. Graças à tecnologia ao nosso dispor, é bastante fácil gravarmos o concerto para posteriormente podermos rever as imagens e guardá-las como recordação, mas surge uma questão interessante: será que as pessoas estão mais focadas em filmar o concerto ou em realmente aproveitá-lo?

A tendência de filmar e fotografar tudo, estar com os telemóveis sempre à mão, é notável nos concertos. No meio da multidão, é difícil não notar uma parte significativa do público com os telemóveis erguidos, concentrados em filmar o concerto em vez de aproveitar a experiência única. E muitas vezes, muitas destas pessoas apenas estão a filmar o concerto para partilhar as imagens nas redes sociais.

Podemos relacionar esta situação ao conceito de Marx e Engels de "Ideologia como falsa consciência" e a "Retórica da imagem" de Roland Barthes.

A conceção de "Ideologia como falsa consciência" de Marx e Engels mostra que as crenças e visões do mundo pela sociedade podem não refletir objetivamente a realidade, mas refletem as perspetivas da classe dominante. Muitas vezes, as pessoas interiorizam ideias que são aceites por grande parte da sociedade, mesmo que não seja o seu verdadeiro ponto de vista. Isso significa que as ideias prevalecentes podem distorcer a compreensão da realidade. Nesse contexto, as pessoas que filmam de forma compulsiva durante os concertos podem estar inconscientemente a interiorizar uma ideologia que valoriza a visibilidade online.

Atualmente as pessoas partilham grande parte das suas vidas nas redes sociais, como viagens, passeios, experiências e concertos. Muitas pessoas sem se aperceberem ficam muito dependentes desta partilha nas redes sociais e sentem sempre necessidade de o fazer.  Para muitas pessoas, quanto mais likes se tem mais essa pessoa se sente aceite e notada. Por esta razão estas pessoas podem sentir pressão para partilhar cada momento, inclusive aqueles que deveriam ser apreciados de forma mais pessoal. A filmagem constante nos concertos pode ser interpretada como uma expressão desse desejo de validação, onde essa experiência é validada não apenas pela vivência do momento, mas também pela sua partilha e visibilidade online.

A "Retórica da imagem" de Roland Barthes destaca a capacidade das imagens de influenciar a perceção e visão das pessoas, indo além da mera representação visual. Podemos aplicar a perspetiva de Barthes a este tema. Essa perspetiva mostra que quando fotografamos ou filmamos um momento não é apenas como lembrança, estamos no entanto a construir uma narrativa visual. A experiência não é apenas o que aconteceu durante o concerto, mas também passa a ser como essa experiência é percebida e interpretada através das partilhas nas redes sociais. Ao filmar um concerto, as pessoas selecionam e moldam a experiência para criar uma narrativa específica. Ao escolhermos os momentos para filmar, os ângulos e a edição dessas filmagens, estamos a tomar decisões que de certa forma criam uma versão da realidade diferente da experiência vivida.

Este ano fui ao festival Meo Kalorama, e no concerto de Florence and the Machine reparei que grande parte da multidão estava com os telemóveis na mão a filmar o concerto. No fim de uma das músicas a vocalista disse que para continuar o público tinha de, naquele momento, largar e esquecer os telemóveis. Aproveitar o momento em vez de gravar o momento. Logo, até a vocalista, se sentiu de certa forma incomodada ao ver que grande parte do público que a estava a ver estava a filmar em vez de aproveitar e apreciar a música, porque ela está ali para cantar e partilhar o que gosta de fazer com o público. Esse gesto de exigir que todos largassem os telemóveis para apenas apreciarem o momento foi algo significativo, e nas músicas seguintes era notável uma maior energia do público. Fez-me pensar, o que é que queremos ter como recordação, um vídeo do concerto que podemos ver no Youtube ou a memória da experiência do concerto?

Em conclusão, esta situação frequente nos concertos mostra que a barreira entre o real e o virtual pode ser tênue e, por vezes, até mesmo enganosa. Embora a tecnologia permita que gravemos os momentos como recordação, também coloca em risco a autenticidade das experiências. Ao estarmos sempre dependentes da tecnologia e estarmos focados em filmar o momento, podemos perder a oportunidade de simplesmente viver e apreciá-lo. Logo, é importante encontrarmos um equilíbrio entre a tecnologia e a vivência de experiências únicas.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Olhares cinematográficos


       Male Gaze e Female Gaze no cinema | Transformers (2007) & Pride & Prejudice (2005)

  Após a leitura de excertos do ensaio "O Prazer Visual e o Cinema Narrativo" de Laura Mulvey, decidi refletir sobre a presença do Male Gaze no cinema contemporâneo tentando apurar se aquilo que Mulvey aponta no cinema dos anos 70 ainda se verifica nas produções atuais.

  Ao revisitar filmes que havia assistido, buscando identificar a presença do Male Gaze, apercebi-me de algo interessante. A maioria dos filmes que me ocorreram podiam ser divididos em duas categorias: aqueles produzidos para o público masculino e os destinados ao feminino. Essa distinção não era explicitamente mencionada na descrição do filme ou na sua categoria, mas sim no enredo, propósito e na construção das personagens, revelando uma clara dicotomia cinematográfica.

  Nos filmes voltados para o público masculino, como as diversas produções de "James Bond" e "Transformers", o enredo geralmente prioriza a ação em detrimento das emoções. São frequentes cenas heroicas e quase impossíveis, protagonizadas por homens fortes, aventureiros, destemidos e, por vezes, impiedosos. As personagens femininas, por sua vez, são retratadas como apêndices aos feitos do homem, valorizadas pelo olhar masculino em detrimento de sua profundidade e autonomia.

  Paradoxalmente, Hollywood promove uma falsa narrativa feminista, criando filmes centrados em personagens femininas fortes, como "Black Widow" e "Tomb Raider". Que, embora aparentem valorizar a independência feminina, estas personagens exibem  frequentemente uma forte carga sexual que raramente se justifica no enredo. São apresentadas como símbolos sexuais, vestindo roupas justas que pouco condizem com suas funções no filme, alimentando o voyeurismo masculino e reduzindo-as a objetos de desejo.

  Por outro lado, existem filmes direcionados ao público feminino, incorporando o Female Gaze. Este não se limita a ser uma mera antítese do Male Gaze. É um apelo pela igualdade, explorando a objetificação feminina e destacando o desejo por relacionamentos emocionais e complexos. Filmes como "Lady Bird", "Pride & Prejudice" e "Little Women" priorizam personagens femininas complexas, enquanto os personagens masculinos são retratados como maturos, emocionais e intelectuais, valorizando atributos tanto de personalidade como de aspeto. Aspeto este, por norma, oposto do visto como tradicionalmente masculino.

  A coexistência desses dois polos opostos no cinema contemporâneo é um fenômeno ambíguo. Enquanto perpetua a segregação por sexualidade com o Male Gaze, onde este tem um efeito diminuidor na mulher e continua a ditar o valor que esta vê si própria, a ascensão do Female Gaze, impulsionada pelo aumento de cineastas em Hollywood, representa um passo em direção à igualdade de gênero. Pelo que o ensaio de Laura Mulvey, apesar de continuar relevante e válido, pode agora ser atualizado para englobar esta nova corrente que surge e que traz para discussão uma perspetiva mais completa do fenómeno sexual no cinema.

  Esta dualidade, sem dúvida, persistirá e evoluirá, sendo tanto um desenvolvimento positivo quanto negativo. A segregação por sexualidade é aplaudida pelo mercado global, visto que impulsiona lucros que são o motor e o centro da indústria de Hollywood e não a arte e a importância cultural do que é produzido. Fica apenas a questão de para onde evoluirão? Será que o Male Gaze será atenuado pelo o crescente aumento da consciência e responsabilização por desigualdades em Hollywood? Ou tornar-se-á o Female Gaze dominante, objetificando homens para o prazer feminino? 

  Penso que com o tempo chegaremos à conclusão de que nenhuma destas possibilidades foi ou será alguma vez possível de se realizar…


A evolução na educação

 


A evolução da educação ao longo dos anos tem sido marcada por transformações significativas, impulsionadas pela tecnologia, mudanças sociais e novas abordagens pedagógicas. Este processo contínuo reflete a busca constante por métodos mais eficazes de ensino e aprendizado, procurando preparar os alunos para os desafios de um mundo em constante transformação.

Uma das mudanças mais notáveis tem sido a incorporação crescente da tecnologia na sala de aula. A introdução de dispositivos eletrônicos, softwares educacionais e recursos online ofereceu novas formas de acesso ao conhecimento, estimulando a aprendizagem ativa e personalizada. Além disso, a educação a distância e as plataformas online proporcionaram oportunidades de aprendizado flexíveis, permitindo que os alunos acessem a conteúdos de qualquer lugar do mundo.

Outro aspeto importante na evolução da educação é a valorização das habilidades socioemocionais. À medida que a sociedade reconhece a importância do desenvolvimento integral dos indivíduos, as escolas têm procurado cultivar competências como empatia, colaboração, criatividade e pensamento crítico. Essas habilidades não só preparam os alunos para o mercado de trabalho como também contribuem para a formação de cidadãos mais conscientes e responsáveis.

No entanto, os desafios persistem. A desigualdade no acesso à educação e a disparidade na qualidade do ensino ainda são questões presentes em muitas regiões do mundo. Além disso, a adaptação rápida às mudanças tecnológicas e a formação de professores para integrar essas inovações continuam a ser desafios a serem enfrentados. A globalização e a interconexão entre diferentes culturas têm desempenhado um papel crucial na evolução da educação. A necessidade de preparar os alunos para uma sociedade cada vez mais interdependente levou a uma pressão maior na educação global. As escolas estão a procurar desenvolver a consciência cultural, desenvolvendo os alunos com habilidades que transcendem fronteiras geográficas e culturais.

Além disso, a importância na aprendizagem ao longo da vida tornou-se uma prioridade. A rápida evolução das carreiras e a introdução de novas tecnologias exigem que os indivíduos estejam preparados para aprender ao longo de suas vidas. As instituições educacionais adaptam-se aos métodos de ensino para cultivar a capacidade dos alunos de se atualizarem e se adaptarem a mudanças em suas carreiras e na sociedade. A personalização da educação também é uma tendência em ascensão, reconhecendo que os alunos têm estilos de aprendizagem diferentes e ritmos individuais de absorção de informações, as escolas procuram abordagens mais personalizadas.

Apesar desses avanços, é importante abordar os desafios persistentes. A falta de recursos em muitas regiões, a resistência à mudança e as disparidades econômicas continuam a ser obstáculos significativos. É fundamental que os esforços na evolução da educação se concentrem não apenas em inovações tecnológicas, mas também em garantir a equidade no acesso e na qualidade da educação em todo o mundo.

Em conclusão, a evolução da educação reflete uma jornada contínua para atender às demandas de uma sociedade em constante transformação. Ao adotar abordagens inovadoras, promover a inclusão e cultivar habilidades relevantes, podemos construir um sistema educacional mais eficaz e preparar os alunos para os desafios e oportunidades do futuro.

A Beleza que nasceu do Crime

 

http://res.dallasnews.com/interactives/graffiti/img/art1.jpg

 Certo dia, há vários anos, acordei com algo que se calhar deixaria qualquer pessoa chateada e inquieta. Tinha uma grande parte do muro do terreno, ao lado da minha vivenda, pintado com grafiti. A pintura não tinha lá palavras visíveis, insultos, pessoas ridicularizadas, figuras obscenas ou sexuais, movimentos políticos ou insultos. Eram apenas traços, curvas e/ou figuras geométricas, com várias cores, e coladas umas às outras, quase como se formassem uma palavra numa caligrafia dificilmente inteligível, a ocupar um muro do meu terreno. Algo que era suposto ser considerado um ato de vandalismo, com direito a uma queixa policial, e que me deveria deixar irritado, simplesmente deixou-me perplexo.

 Esta história vai de encontro com a Retórica da Imagem de Roland Barthes, pois o mesmo afirma que as imagens trazem consigo significado e emoção, o que leva a diferentes perceções e diferentes maneiras de como a Imagem comunica com as pessoas. Neste cenário, um muro com grafiti  representa tanto um ato de vandalismo como também uma expressão artística, capaz de "apaixonar" o sujeito visual.

 O grafiti é usado na maioria das vezes como forma de vandalismo e propaganda de emoções e mensagens. As pessoas geralmente usam o grafiti nos muros das ruas, nas paredes dos edifícios, nas laterais dos comboios ou até mesmo em estátuas e monumentos culturais. É verdade que nem sempre as pinturas nesses sítios são efetivamente mensagens. Algumas são mesmo desenhos, figuras ou objetos animados, e, apesar de ser considerado à mesma vandalismo, por se tratar de pinturas não autorizadas, é possível ver nelas um valor artístico.

 Perguntei-me há quanto tempo é que aquele grafiti estava no muro. Ser feito numa só noite era o cenário mais provável. Afinal, a pintura não era propriamente muito pequena e invisível ao olhar. No entanto, foi feito num sítio que era pouco circulado e vigiado por pessoas. Durante a noite, com pouca luminosidade, qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, poderia ter feito aquilo.

 De qualquer forma, nesse dia fiquei dividido. Claro que ainda era um jovem, acabado de entrar na vida adulta, e sabia que aquilo que pintaram na minha propriedade era errado, desrespeitoso e infeliz, e que teria que remove-la daquele sítio, mas por outro lado aquilo era tão criativo e fascinante, difícil de perceber ou relatar, que não me pareceu bem removê-lo. Tirar uma fotografia aquela pintura também não me pareceu bem. Poderia recordá-la para sempre, mas o seu valor enquanto imagem diminuiria. É como comprar um quadro de uma pintura famosa para tê-la em casa ou imprimir essa mesma pintura e emoldurá-la. Ambos têm preços diferentes, não só monetários como em valor. Deixá-lo naquele muro, poderia também ser uma decisão errada, pois poderia causar desconforto nas pessoas que lá viviam perto, ou causar a sensação de abandono daquela propriedade e despreocupação da manutenção e limpeza da mesma.

 Tomei a decisão de deixá-la no muro por algum tempo. Nos dias seguintes, sempre que fosse para a faculdade, tinha a preocupação de passar por esse muro pintado. Fiz disso rotina para não só me lembrar da importância da arte e expressão artística, como também por me fazer aperceber que apesar de não ser um "apreciador de arte", tanto eu, como qualquer outra pessoa que também não o seja, tem a(s) sua(s) sensibilidade(s) artística(s) e pode ser facilmente surpreendido como uma demonstração artística, como o grafiti, pinturas a óleo, desenhos com tinta, etc.

 Passados meses, o grafiti foi removido do muro, para o mesmo levar uma nova pintura, e ser pintado todo de branco, como antes. Essa decisão causou-me, novamente, uma sensação tanto de indiferença como de pena. A pintura já estava lá há meses, sem ninguém lhe acrescentar ou grafitar ao lado, o que quer dizer que quem fez a fez teve provavelmente o seu trabalho terminado, e o facto de ela já estar lá esse tempo todo, fez com que eu passasse a olhar para o muro e para a pintura como algo "banal", e que esteve lá desde sempre. A beleza, espanto e perplexidade que outrora senti, já se tinha desvanecido por completo. Por outro lado, lembrava-me dessas emoções que senti, e ver uma pintura com grafitis que eu admirei no passado a desaparecer, deixou-me com uma sensação de pesar, não só por ver algo que me fez "brilhar" os meus olhos desaparecer por completo, como também pelo facto de não se conhecer a pessoa cujas capacidades artísticas fizeram com que algo que é considerado por muitos um ato de vandalismo e insulto se tornasse um objeto de apreciação artística.

 Isto demonstra que quando o grafiti é usado de forma responsável, pode ser uma forma poderosa de arte, que causa emoções fortes nos espetadores, como qualquer outra forma de arte. Pode ser uma forma de chamar a atenção para questões importantes, ou de simplesmente tornar o mundo mais belo. No entanto, quando o grafiti é usado de forma irresponsável, onde causa danos a propriedades privadas, zonas turísticas, monumentos, etc. passa a ser uma fonte de medo, insegurança e revolta pelas pessoas que o assistem. É importante que o grafiti seja usado de forma responsável. Os artistas de grafite devem respeitar essas propriedades e zonas, e devem evitar pintar em locais onde possam causar danos ou insegurança.

 Se o grafiti fosse usado mais como forma de arte ao invés de vandalismo, poderia causar mais emoções positivas e poderia fazer as pessoas pensarem, sentir e agir, como também poderia tornar o mundo um lugar mais bonito e mais interessante.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

A Moda na Era da Reprodutibilidade

No século XVIII, a revolução industrial impulsionou o crescimento da indústria têxtil, permitindo a produção em massa de tecidos e roupas. Com a invenção de ferramentas como o tear mecânico e, mais tarde, a máquina de costura a moda deixava de ser um luxo, acessível apenas às classes altas e à nobreza, estendendo-se então às massas. Ao longo do tempo com os posteriores avanços tecnológicos, a acessibilidade ao vestuário foi sendo cada vez maior, integrando-se na cultura do consumo e, com a terceirização da produção de roupas para os países com mão de obra mais barata, no século XX, a aceleração dos ciclos de moda tornou-se cada vez maior surgindo as coleções sazonais que tão rapidamente passam pelas vitrines das grandes marcas.

Como será então a vivência atual da moda?

Como é que a produção em massa de conteúdos de vestuário afetou a nossa vivência deste tipo de manifestação cultural?

É importante perceber que a produção cultural não existe num vácuo e, no caso da moda em particular, fatores de psicologia social tendem a ser particularmente evidentes. Porque a minha roupa não é como um quadro que eu tenho exposto em casa numa parede e que posso admirar confortavelmente na distância (dissociado de mim), eu uso a minha roupa. O vestuário é uma das poucas manifestações artísticas que toma a forma do sujeito, passa horas junto ao seu corpo tornando-se quase indissociável do mesmo e por esta razão, acaba funcionando como uma espécie de extensão de fatores de personalidade e identidade. A identidade social de um indivíduo, por exemplo,  e a sua pertença a determinados grupos sociais e correntes estéticas é muito frequentemente manifestada através da roupa que usa, pelo que esta face da moda não deve ser desconsiderada. Há também fatores de conformismo e influência social que representam um papel importante no que toca ao consumo de peças de vestuário contribuindo para uma certa uniformização do modo de vestir dentro dos vários estilos.

Num mundo cada vez mais marcado pelas redes sociais é apenas natural que este seja outro fator de grande influência na área da moda também. A esmagadora maioria dos utilizadores, conscientemente ou não, está constantemente a receber informação sobre vestuário quer seja de forma direta (seguir influencers de moda e beleza) ou indireta (como as roupas usadas pelos seus criadores de conteúdo favoritos e com os quais se identificam). É aqui que nos deparamos com o que considero uma era da reprodutibilidade massiva. A cativante estética dos ecrãs e a minúcia dos algoritmos reproduzem seleções cuidadosamente orquestradas para se enquadrar nos gostos de cada individuo o qual, por sua vez, caso veja alguma peça que lhe agrada, terá toda a facilidade em adquirir uma igual. O fenómeno por vezes espalha-se de tal maneira, que há correntes de criadores a falar sobre como descobriram a mesma peça através de outros, que “viralizam” e começam uma nova tendência. Escusado será dizer, dada a sua importância e premente influência que estes meios não são desprovidos de publicidade e que o link está sempre convenientemente disponível para quem queira comprar. De facto, o tema da reprodutibilidade é tão presente no vestuário atual, que não nos é estranho pensar que imprimimos estampas em camisolas quase como se de jornais se tratassem e é frequente encontrar alguém com uma peça igual na rua sem que isso seja motivo de surpresa. As consequências desta ocorrência na moda atual são, no entanto, diferentes das que ocorrem na pintura por exemplo, já que frequentemente as peças de roupa são criadas com este mesmo propósito e o único contexto do qual necessitam é o do sujeito que as ostenta. No entanto dá-se também o caso de haver algum valor ritual presente em determinados tipos de vestimenta que se vai metamorfoseando quando o seu uso é retirado do contexto ou banalizado.

Os tempos têm vindo a mudar, cada vez mais rápido e com eles a moda não é exceção da industrialização à produção em massa, passando para a cultura do consumo, a nossa vivência da moda tem-se transfigurado sendo hoje imensamente diferente do que era, nomeadamente, há 50 anos, antes do aparecimento e generalização das redes sociais. Se por um lado se perdeu alguma da raridade e valor ritual das peças de vestuário, por outro, tornou-se mais fácil encontrar roupas adequadas às mais variadas necessidades sem a inconveniência de ter de correr várias lojas presencialmente em busca de algo que cumpra os nossos requisitos. Quem sabe no próximo século qual será a vivência da moda enquanto arte e manifestação cultural que é… de qualquer das formas a certeza é uma (parafraseando Iris Apfel): a moda nós podemos comprar, mas estilo é algo que se tem.

Mulholland Drive

Mulholland Drive é um filme de David Lynch, lançado em 2001, conhecido pelo seu cariz surrealista e pelo seu enredo indecifrável. Há cerca de um mês visualizei-o no grupo de cinema da faculdade (CineFbaul), que promovo juntamente com outros colegas, e não foi de espantar que este tenha trazido muitas pessoas à sessão.

Para mim, aquilo que se mostrou mais avassalador em Mulholland Drive (sendo que este foi o primeiro filme do David Lynch que vi) foi a maneira como afirma o cinema enquanto construção teatral e onírica. O encadeamento das imagens que compõem o filme, os shots demorados e os diálogos desfasados alternados por cenas de aparente “normalidade” fazem persistir uma impressão de desconforto, tudo é real e, simultaneamente, tudo é possível. A “suspensão temporária da realidade” funciona como que de modo inverso, sabemos que tudo é possível, não porque acreditamos naquele universo cinematográfico como um universo cujas premissas são verdadeiras, mas sim porque o próprio filme se nos apresenta como um sonho (a cena antes dos créditos iniciais onde vemos uma cama indica-nos que alguém dorme, não sabemos se nós, se uma das personagens). Assistimos à sua projeção como se de uma janela para dentro do nosso próprio inconsciente se tratasse, o aperfeiçoamento da transposição do sonho para o ecrã revela-se aterrorizadora, como, por exemplo, na cena em que dois homens discutem o sonho de um deles num diner e, de seguida, o sonho acontece. Compreendemos que não há lei do mundo real que nos possa proteger, estamos expostos ao absurdismo violento do subconsciente e, ao afastarmos os olhos do ecrã, perguntamo-nos se o mesmo não se dará com aquilo que nos rodeia.
Por outro lado, à semelhança de Persona (1966), duas mulheres surgem como espelhos uma da outra, e vão se progressivamente fundindo. O papel da atriz é o da máscara, da construção. O “eu” que se desdobra em múltiplos, a película que fixa imagens como que inconscientes, para logo de seguida as destruir e anular.
O filme, que retrata Hollywood e os esquemas da indústria, expõe constantemente os seus mecanismos de fabricação da imagem, à maneira da alienação brechtiana. Quando Rita e Betty se dirigem a um clube noturno é lhes apresentado onde um apresentador fala por cima de uma gravação de uma banda de jazz, e repete “No hay banda”. Não há banda, mas ouvimos uma banda, de seguida entra uma cantora, emociona o público com a sua atuação, mas a meio desmaia e a canção continua, era na verdade playback. Somos sacudidos por esta revelação, de que tanto o espetáculo dentro do filme como o próprio filme é só uma construção.
Assim, Mulholland Drive é um filme que nos agita na sua constatação da fluidez da realidade. Aquilo que se afirma verdadeiro é apenas fabricação (o cinema), aquilo que se mostra uno pode ser fragmentado (a identidade) e aquilo que se considera absurdo pode ser plausível (o sonho).