quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Imagina só

 Imagina só: chegas a casa, sentas-te no sofá depois de um dia cansativo, e recebes uma notificação da "betclic" com a catchphrase mais aliciante e excessivamente atrativa para ser verdade: "Ganha já 500€ em bónus de boas-vindas!"  Pois é, porque geralmente é mesmo. Os casinos online são como aquele amigo que te convida para sair numa quarta à noite. Sabes que não devias e que provavelmente não vai ser aquilo que esperas, mas a promessa de diversão é quase impossível de resistir que aceitas. E tal como nessa saída a meio da semana, as consequências podem ser bem piores do que uma simples ressaca. Pensa nisto: quantas vezes já ouviste falar de alguém que ficou rico da noite para o dia com jogos online? Provavelmente poucas. Mas as histórias de pessoas que perderam tudo? Essas são bem mais comuns, embora nem sempre as ouçamos. O problema é que estes jogos são desenhados para nos manter agarrados. É como aquele pormenor insignificante num trabalho que estás a fazer, que te mantém acordado até às tantas - só que em vez de perder umas horas de sono, podes perder as tuas poupanças. E não é só o dinheiro que está em jogo. Imagina passar horas a fio colado ao ecrã, a apostar, em vez de estar com a família ou os amigos. Ou acordar a meio da noite para ver se ganhaste alguma coisa. Não soa muito a uma vida saudável, pois não? O mais triste é ver pessoal jovem que como eu, já caíram, e outros tantos que ainda caem nesta armadilha. Cresceram com tecnologia e publicidade por todo o lado, e para muitos, os casinos online parecem uma forma fácil e divertida de ganhar dinheiro. Mas a realidade é bem diferente. Se num dia fazes 100€ de lucro, vais acabar por perder esse dinheiro nos dias seguintes, ou na pior das hipóteses pouco tempo depois de o teres ganho. No fundo, é como aquelas ferramentas milagrosas que prometem recuperar a tua hairline em tempo recorde e sem esforço. Sabes que não funcionam, mas a tentação de acreditar é grande. Com os casinos online, é a mesma coisa - a promessa de riqueza fácil é tentadora, mas raramente se concretiza.

A publicidade, UI, UX, as vagas de sorte que vão surgindo, etc. carregam um significado que vai muito mais além do literal. Todas estas frases: "Ganha já 500€ em bónus de boas-vindas" ou "A tua oportunidade chegou!” contribuem para isso mesmo. Roland Barthes interpretaria como uma linguagem simbólica que cria mitos. Para ele, a publicidade não é apenas um meio de comunicar um produto ou serviço, mas um sistema que associa ideias a significados culturais e emocionais,e que posteriormente vendem uma promessa de ascensão, liberdade e transformação pessoal. Esta “mitificação” transforma um simples jogo de slots num símbolo maior, o do sucesso fácil e rápido. O problema é que, tal como o mito, a promessa é ilusória – um artifício projetado para seduzir e explorar os desejos humanos.

Portanto, da próxima vez que receberes essa notificação a prometer-te o mundo, lembra-te: se parece bom demais para ser verdade, provavelmente é. Em vez de arriscar tudo no Sweet Bonanza, que tal investir em ti próprio? Afinal, a melhor aposta que podes fazer é em ti e no teu futuro.

sábado, 21 de dezembro de 2024

TIME goes by so slowly

97 anos que a prestigiada revista norte-americana TIME elege o título de “Person of the Year. Um título que, devido à sua designação literal e a muitos dos seus mais mediáticos vencedores, é visto como um prémio, algo positivo, no entanto, o seu histórico conta-nos muito mais. No artigo deste ano, naquele em que nomeiam Donald Trump pela segunda vez, Sam Jacobs escreve: 

Over time, we’ve seen the Person of the Year franchise shift: from Man of the Year to its current designation; from the period between the world wars, defined by leaders like Mohandas Gandhi and Wallis ­Simpson, to the first quarter of the 21st century, an era marked by the tremendous changes ushered in by a technological revolution. ­Although the ­American presidency has evolved across these eras, its influence has not diminished. Today, we are witnessing a resurgence of populism, a widening mistrust in the institutions that defined the last century, and an eroding faith that liberal values will lead to better lives for most people. Trump is both agent and beneficiary of it all. 

For marshaling a comeback of historic proportions, for driving a once-in-a-­generation political realignment, for reshaping the American presidency and altering America’s role in the world, Donald Trump is TIME’s 2024 ­Person of the Year. 

Os jornalistas da TIME referem que, ao longo dos últimos 97 anos, a “Pessoa do Ano” é aquela que, para melhor ou pior, mais influenciou as tendências, notícias e eventos daquele ano. Uma análise detalhada de toda a controvérsia (ou pelo menos fatores que me incomodam) sobre este “prémio” tornaria este texto demasiado extenso, uma vez que era intitulado “Man of the Year” até 1999, ou “Women of the Year”, mas apenas em 3 ocasiões (1936, 1952 e 1986) e até "Man and Wife of the Year" (1937) ou cuja lista de vencedores inclui, por exemplo, Hitler (1938) e Khomeini (1979) e 24 presidentes dos EUA. Falemos então, do presente. 

Acusado de uma longa lista de crimes, que variam entre conspiração e abuso sexual e violação, Donald Trump, foi eleito presidente dos Estados Unidos da América pela 2ª vez e TIME’s Person of the YearTambém em 2024, Gisèle Pelicot conseguiu responsabilizar e ver prender 50 dos mais de 80 homens, incluindo o seu marido, que a drogaram e violaram durante 9 anos.  

Em 2022, “O Espírito da Ucrânia” foi a última das noções abstratas a ser nomeada “Person of the Year”, pela resiliência e resistência do povo ucraniano face aos horrores que sofreram. Junta-se a uma lista que inclui, por exemplo, as participantes do movimento #MeToo (2017) e “O Protestante” (2011). Não desmerecendo nenhuma dessas atribuições, mas sim seguindo essa lógica, nos últimos 14 meses, morreram 45,192 palestinianos, incluindo 17,492 crianças - não houve menção deste povo nos candidatos ao prémio. Houve, no entanto, de Benjamin Netanyahu. 

Over time, we’ve seen the Person of the Year franchise shift (...) Today, we are witnessing a resurgence of populism, a widening mistrust in the institutions that defined the last century, and an eroding faith that liberal values will lead to better lives for most people.”  

Bem prega Frei Tomás: faz o que ele diz, não faças o que ele faz.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Alien: Uma Perspectiva Feminista sobre o Primeiro Encontro Extraterrestre

 O filme "Alien: O Oitavo Passageiro" (1979), dirigido por Ridley Scott, é amplamente reconhecido como um marco no cinema por sua abordagem inovadora ao protagonismo feminino e por incorporar temáticas feministas de maneira sutil, porém impactante.

A personagem Ellen Ripley, interpretada por Sigourney Weaver, destaca-se como uma das primeiras heroínas de ação em um gênero até então dominado por figuras masculinas. Inicialmente concebida como um personagem masculino, Ripley foi reimaginada como mulher, o que trouxe uma nova dinâmica ao filme. Sua representação foge dos estereótipos tradicionais: ela não é sexualizada nem dependente de figuras masculinas para sua sobrevivência. Pelo contrário, Ripley demonstra inteligência, coragem e liderança, características que a tornam uma figura emblemática no debate sobre representatividade feminina no cinema. 

Além disso, o design das criaturas e as situações apresentadas no filme carregam fortes conotações de temas relacionados ao corpo e à sexualidade. As cenas de impregnação forçada pelos alienígenas e o subsequente "nascimento" violento podem ser interpretadas como metáforas para questões como violação e controle sobre o corpo, trazendo à tona discussões sobre medos relacionados à maternidade e à invasão corporal. 

A franquia "Alien" continuou a explorar essas temáticas em suas sequências, consolidando-se como uma série que desafia normas de gênero e provoca reflexões sobre o papel da mulher em situações de extrema adversidade. A complexidade de Ripley e sua evolução ao longo dos filmes refletem a luta por igualdade e reconhecimento enfrentada por muitas mulheres, tanto na ficção quanto na realidade. 

Em resumo, "Alien" não apenas revolucionou o gênero de ficção científica e terror, mas também abriu caminho para discussões profundas sobre feminismo, poder e resistência, tornando-se uma obra atemporal e relevante nas análises contemporâneas sobre gênero no cinema.




Socialização através da arte em 2024: uma demonstração genuína dos nossos gostos ou uma competição egocêntrica pseudointelectual?

Desde a sua criação, os filmes unem as pessoas. A sétima arte, o culminar de todas as formas de expressão, serve, sempre serviu e servirá os gostos de todos – do mais crítico ao mais ingénuo, toda a gente consume cinema. No entanto, há 13 anos, era colocada a questão: num mundo tão vasto, onde posso encontrar pessoas com os mesmos gostos cinematográficos que os meus? (uma pergunta que atormentava toda a gente diariamente, de certeza). A verdade é que os aficionados da fotografia, da música, até da literatura já tinham redes sociais para expressarem os seus gostos e compartilharem o que andavam a consumir. Havia um vazio no mercado. Entra então Letterboxd: social film discovery”. 

Já em 2020, por causa de algo que havia no ar, as pessoas viram mais filmes que o habitual. E então, numa era de partilha como a que vivemos, o número de contas no Letterboxd duplicou em pouco mais que 6 meses e não parou - ligeiramente aquém dos 2 milhões de contas no ano da pandemia, a rede social dos amantes das peliculas conta agora com 14 milhões de usuários (junho 2024). 

Numa altura em que o futuro do cinema era incerto, a popularização do Letterboxd deu uma nova esperança à comunidade, mas se a aplicação fez bem ou mal aos cinemas e às pequenas produções, se ajudou os escritores a revindicar os seus diretos na greve de 2023 ou até se deu a conhecer novos mundos a aspirantes novos artistas, não são as questões que me concernem neste momento.  

Se vivemos numa era de partilha, vivemos também numa era de comparação. As redes sociais, indireta ou diretamente, alimentam uma cultura egocêntrica e de competitividade. Quando aplicado ao Strava, ainda bem, mas deverá o consumo de arte ser algo industrializado? Automatizado para que possamos ter números mais altos no perfil do que os nossos amigos?  

O que quero dizer é tão simples quanto isto: há quem esteja tão restringindo à noção das redes sociais, à imagem que passa, à aesthetic, que é incapaz de ter uma experiência como a que realmente quer – tudo o que faz é porque os outros vão ver, é porque vai ser julgado por...alguém? então ̶d̶e̶v̶e̶  tem que fazer como ditam as normas... até na arte. 

Havendo também aqueles que acreditam que só a arte que eles consomem é a correta ou a boa, só gostava que as pessoas quebrassem um pouco as personas que desenvolvem online e fizessem aquilo que lhes deixa feliz, por exemplo. 

No final do dia, o Letterboxd acaba por ser das melhores redes sociais hoje em dia (não é fascista) e deu uma nova vida ao cinema e à comunidade; numa época da massificação e industrialização da arte por parte dos serviços de streaming e grandes produtoras, introduziu um novo mundo a muita gente e abriu uma porta para os amantes desta forma de arte falarem, partilharem, conhecerem e darem a conhecer aquilo que amam. E não é isso do que mais bonito há na experiência humana?

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O Oligarca Americano

Elon Musk está a traçar uma nova era na política norte americana, descrita por Jeffrey A. Winters, professor da Northwestern University e especialista em oligarquias e desigualdade como “We are in an era that I call ‘in-your-face oligarchy”.  Enquanto outros bilionários influenciam discretamente campanhas há anos, Musk escolhe um estilo de oligarca americano descarado. Através de ferramentas como os Super PACs (Political Action Commitees), bilionários conseguem financiar campanhas eleitorais americanas sem grandes restrições legais, criando um sistema onde as decisões políticas podem ser influenciadas mais pelos interesses privados do que pelas necessidades da população. A introdução de Musk neste cenário com a quantia de 260 milhões de dólares doados ao America Pac, torna-o o maior doador político declarado de Donald Trump e coloca-o no centro do poder, “substituindo JD Vance, como o verdadeiro vice-presidente sombra de Trump durante a sua campanha”. Tudo isto levanta questões fundamentais sobre o futuro da democracia americana. Como afirmou Jason Seawright, professor de ciência política da Northwestern University: “We’ve never really seen anyone be that directly connected with a campaign unless they were the candidate.” A aliança entre Trump e Musk mostra como o financiamento político vai remodelar rapidamente a democracia americana, com Donald Trump já a sugerir que Musk lidere o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), o empresário ultrapassou facilmente o papel tradicional de financiador político para se tornar numa figura com potencial influência direta em políticas governamentais. Junto com o bilionário Vivek Ramaswamy, Musk promete cortar em 2 biliões de dólares o orçamento federal, concentrando-se em agências regulatórias que, segundo ele, "atrapalham" setores como construção e tecnologia aeroespacial com as suas burocracias — algo que claramente favorece as suas próprias empresas (Tesla, SpaceX, Starlink e X). Ironicamente, já existe uma agência responsável por melhorar a eficiência do governo, mas a proposta do DOGE destaca-se pelo claro conflito de interesses entre os objetivos pessoais de Musk e as suas funções governamentais.

A conexão simbiótica entre Musk e Trump também trouxe impactos significativos para os mercados financeiros, o fenómeno da "Trump fever" fez disparar as ações da Tesla na bolsa, nove vezes mais rápido do que o índice S&P 500. Não devido a inovações ou avanços tecnológicos, apenas antecipações por parte dos investidores que a proximidade de Musk com o governo resultará em vantagens diretas para as suas empresas. A mudança de ideias de Trump em relação aos veículos elétricos, "I’m for electric cars, I have to be because Elon endorsed me very strongly.” , reflete o poder que Musk detém e antevê vantagens regulatórias e novos incentivos fiscais para o setor tecnológico e de energia. Devido a isto a fortuna de Musk foi “turbocharged” até aos 400 mil milhões de dólares, tornando-o no homem mais rico do mundo.

A aquisição do Twitter por Musk, rebatizado de X, transformou a plataforma num campo fértil para a disseminação de teorias da conspiração e desinformação, muitas vezes alinhadas com a narrativa de Trump e da direita americana. Como proprietário da plataforma, Musk moldou a discussão pública de uma forma que poucos bilionários conseguem, usando a sua visão de "liberdade de expressão" como escudo para promover uma agenda política que beneficiou o ex-presidente.

Lara Trump, nora de Donald Trump e então co-presidente do Comitê Nacional Republicano, reconheceu abertamente o papel central do Twitter na eleição: “I think he was really important for this election. Purchasing Twitter, truly making it a free speech platform, I think, was integral to this election, to the win that Donald Trump had.” Esta declaração destaca o papel estratégico que a plataforma desempenhou, não apenas como ferramenta de comunicação, mas como alavanca direta para influenciar o resultado eleitoral.

Como observa o historiador Benjamin Soskis: “Musk is no different than the kind of oligarch that we see in many other countries. What I think is different about it is that Musk is doing this in the full glare of public regard, and with a kind of presumed democratic legitimacy to it.” Musk não é apenas um observador, mas sim um jogador ativo que usa a sua influência e fama para moldar o futuro dos Estados Unidos. Os negócios e a política estão a fundir-se de uma forma que se torna cada vez mais difícil definir onde termina o poder económico e começa o poder político. A pergunta que fica é: estamos a entrar numa era onde os mais ricos, como Musk, têm o poder de definir os rumos da política, da economia e da sociedade, tudo em nome do lucro e do benefício próprio?

A Retórica de Barthes na era das imagens criadas por IA

 Quando Barthes fala acerca da retórica da imagem, defende que as imagens não são apenas meras representações da realidade, mas sim uma construção de vários significados que levam a diferentes interpretações dos vários tipos de público. Agora que estamos numa era completamente dominada pela inteligência artificial e pela criação de imagens computorizadas, os significados podem ser agora ainda mais fáceis de manipular.   

Na criação de imagens geradas por IA, o processo de criação pode ter similaridades com o processo que Barthes descreveu. Produzem-se imagens a partir de descrições literais, a denotação, sendo também introduzidas associações culturais e estilísticas, a conotação, que estão totalmente ao dispor de quem escreve essas descrições. Há também um maior controle na manipulação dos significados por meio das escolhas feitas acerca da composição da imagem. Com pequenos comandos de textos podemos alterar toda a imagem, seja de ângulo, iluminação ou até mesmo de contexto. Está assim à distância de um clique uma grande facilidade em adaptar várias mensagens a diferentes público alvo.

Alinhando-se à ideia de Barthes, a criação de imagens pode ser utilizada para fins específicos, comunicando e evocando emoções, no entanto há a probabilidade de gerar narrativas visuais sem qualquer contexto crítico. Podem ser amplificados aspetos e estereótipos culturais e sociais gerando significados não intencionais pela parte do criador, podendo propiciar, por exemplo, preconceitos.

Concluindo, associando a retórica com a era em que vivemos, entendemos que estas imagens geradas são um exemplo sólido de como estas possuem diversos significados, influenciando e moldando as nossas perceções e visões acerca do mundo.

Pré - Big - Bang

A construção do Sol. E a vigia. 

Clareira de esplendor — a falta de palavras. A negação de uma flor e o seu desflorar em virtude. Ternas são as nuvens que vestem o Atlântico de infinitas possibilidades. O Azul o Verde o Basalto. Força terrível e tragicamente divina. Toda a sua luz, refletida sobre a íris da sua óptica, revelava a imagem da imagem que a guardava. E imóvel continuas, sobre o clarão do grande satélite. Horizonte sem fim e o estrondo da explosão. O ser entregue à imensidão do mundo e toda a perda de sentido — a repetição com todas as palavras que me faltavam. O bom tempo, estende-se sobre o canal e as estradas, cortadas. O teu leito sobre a alongada e escura rocha é agora coberto pela neblina que sempre lá esteve e não foste capaz de ver através dela. Nem eu. O balanço do som arrastou-me para longe e vi-me perdida pela agitação de toda a ondulação que derrocou a imponente falésia, atrás de ti. Caminhava, ainda assim, descalça — por entre todas as formas de luz que desenhavam os limites da tua pose. 

O interdito. E o oculto de todo o eclipse.

 

domingo, 15 de dezembro de 2024

O Carro Elétrico como Utensílio: A Desumanização de um Ícone Moderno

 O automóvel é um dos grandes símbolos do progresso industrial do século XX, intrinsecamente ligado ao Sonho Americano e às narrativas de liberdade, aventura e individualidade. Desde os elegantes Cadillacs dos anos 1950 aos potentes muscle cars dos anos 1960 e 70, o carro a combustão representava não apenas um meio de transporte, mas também um objeto com alma: cheio de falhas, ruídos e imprevisibilidades que criavam uma conexão emocional entre o motorista e a máquina.

Com o advento do carro elétrico, essa relação começa a se desmantelar. O automóvel, agora desprovido do som do motor, da vibração sob o capô e das pequenas imperfeições que o tornavam humano, transforma-se em um utensílio funcional, quase clínico. O carro elétrico, embora ecologicamente mais viável, é visto por muitos como "sem alma", desumanizado, uma máquina que simboliza eficiência acima de tudo, sem a poesia que outrora marcava os automóveis tradicionais.

Essa transformação pode ser lida à luz de alguns conceitos do programa. Barthes, por exemplo, em O Novo Citroën, descreve como a indústria automotiva cria mitologias em torno dos seus produtos. O carro elétrico, nesse sentido, poderia ser visto como o novo objeto mitológico do século XXI, mas com uma narrativa distinta: não mais a de poder e liberdade individual, mas a de responsabilidade coletiva e sustentabilidade. No entanto, essa nova mitologia não é isenta de crítica. Como Barthes apontaria, ela é construída por meio de uma retórica de perfeição e progresso que ignora as nuances humanas, as falhas que nos conectam emocionalmente aos objetos.

Além disso, Foucault, em Vigiar e Punir, poderia oferecer uma análise sobre como o carro elétrico se insere em um sistema mais amplo de controle e disciplina. Com tecnologias como a condução autônoma e a coleta de dados em tempo real, o automóvel deixa de ser um instrumento de liberdade e passa a ser um mecanismo que participa da vigilância constante do indivíduo. A utopia de mobilidade prometida pelo carro elétrico esconde um aparato disciplinar que regulamenta os movimentos e hábitos do motorista, transformando o carro em um utensílio altamente regulado e monitorado.

A ideia da falta de alma no carro elétrico também é dialogada com Marx, em particular com o conceito de fetichismo da mercadoria. Assim como outros objetos do capitalismo moderno, o carro elétrico é alienado de sua essência humana e reduzido à sua função utilitária e à promessa de eficiência. A máquina que antes evocava desejo, aventura e emoção é agora vendida como um produto racional, ecoando a alienação do consumidor na sociedade capitalista avançada.

Assim como o plástico, analisado por Barthes, que se torna onipresente e perde seu significado singular, o carro elétrico também se desumaniza à medida que se torna apenas mais um utensílio no vasto universo das mercadorias do capitalismo contemporâneo. O automóvel deixa de ser um símbolo de liberdade para se transformar em um indicador das limitações e contradições do progresso humano no século XXI.


Stream of consciousness V

    Quase te perdia entre as sebes altas, virgem, tarde, sem nada nos bolsos que não esta amizade de prender ao porta-chaves para que nunca se perca entre as coisas lá de casa.

    Penso: comer a lua; beijar-te os olhos fechados. Meter-te os dedos no sexo aberto fugaz. 

    Sento-me à beira da tristeza branca e espero que me digas algo bonito. Ouço-te falar alegre sobre o anjo pequenino que amiúde te visita ao fim da tarde. Debalde afago-te atrás da orelha esquerda e peço-te: quando morreres, faz o favor de me avisares, para dar baixa de uns documentos em atraso aqui na pasta do Inferno. A cadência destes abraços de semáforos vermelhos e silêncios já me cansa.

    Observo as pessoas de dizer olá e adeus à entrada e à saída de um museu de dias iguais a desfocarem na distância de um intervalo onde, de resto, sempre ouvi dizer que a vida, ou o amor, se faz — muito ocupadas e pontilhadas demais para sequer conseguirem falar. Alguém chama pelo meu nome na multidão, mas não sou eu. Penso: faz tanto Sol aqui deste lado de mim. Quem me dera que aqui estivesses para me encheres desse teu céu de maio. E eu, que quase te perdia entre as sebes altas, e te peguei pelo cachaço com as mãos da saudade, quase como se voltasse a ter quinze anos de repente, penso: aulas de matemática físico-química história artes visuais; aborreço-me e, ato contínuo, imagino-te as pernas os braços tudo — que seria de ti afinal se não te ideasse de vez em quando — enleio-me na tua nudez que não o é (nunca o foi, nunca o será) e adoro quando te fazes de difícil, mais ainda quando és fácil: faço-te festas no dorso como se faz aos animais de casa quando se portam bem. Penso: chorar em público, apaixonar-me, adoecer; deitar-me de borco à espera. Um poema por dia, sete a cada semana que passa; amansas-me as palavras com essa tua calma de madrugada de mãos dadas e segredos. Penso: gosto invariavelmente mais de ti. Os teus olhos são um mundo dentro de um mundo. E eu vejo-me neles, e tu nunca te verás nos meus castanho-escuros. E, por último, penso ainda: se me dessem a escolher entre um anjo e um artista, escolher-te-ia a ti na mesma.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Símbolos Visuais do Sonho Americano

O Sonho Americano (American Dream) é uma das ideias mais influentes exportadas pela cultura visual dos Estados Unidos no século XX e ainda no século XXI. Este conceito, popularizado em 1931, pelo escritor e historiador americano James Truslow Adams, durante a grande depressão, promete ao proletariado prosperidade, liberdade e mobilidade social em troca das suas contribuições para a sociedade capitalista americana, e foi amplamente representado em diversos meios visuais, incluindo cinema, publicidade, fotografia e arte. Essas representações moldaram não apenas a identidade cultural americana, mas também as perceções globais sobre os Estados Unidos, servindo como uma forma de propaganda, e incentivando que milhões de pessoas deixassem os seus países de origem e fossem a procura desta promessa na America.

Imagens de casas suburbanas com gramados impecáveis, famílias nucleares, felizes ao redor de mesas de jantar e carros novos estacionados nas garagens tornaram-se ícones visuais da promessa do sonho americano. Na publicidade, produtos como eletrodomésticos e automóveis eram apresentados como símbolos de sucesso e pertencimento ao American Dream. A promessa implícita é que o consumo não só traz conforto material, mas também valida a identidade da classe média e reforça à liberdade pessoal, que está assente em poder escolher entre várias opções nas prateleiras das lojas, onde cada escolha simboliza um ideal diferente que contribuí para a formação da individualidade do consumidor.

Com o advento da globalização, filmes de Hollywood, programas de televisão, músicas e videoclipes, e as marcas americanas e as suas campanhas publicitárias, efetivamente exportaram o American Dream para o mundo todo, e apresentaram os Estados Unidos como uma "terra prometida", especialmente durante a Guerra Fria, em que imagens de arranha-céus, como o Empire State Building, as cidades de Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco, e Chicago, e os subúrbios ensolarados com famílias bem-sucedidas e felizes tornaram-se sinônimos de progresso e oportunidade em contraste com os símbolos visuais sombrios de blocos de apartamentos cinzentos e filas de pão que foram associados a esfera de influência Soviética pela cultura visual ocidental.

Entretanto, ao mesmo tempo que o sonho americano era promovido, artistas e fotógrafos documentaram as suas falhas e contradições. Durante a Grande Depressão, imagens como Migrant Mother (1936) de Dorothea Lange, evidenciaram as dificuldades enfrentadas por milhões de americanos que ficaram excluídos dessa promessa. Mais tarde, na década de 1960, as obras de artistas como Gordon Parks e Andy Warhol exploraram respetivamente as desigualdades raciais e a superficialidade do consumo associadas ao sonho americano. O contraste entre a iconografia aspiracional que predominava nos media em massa e as realidades sociais que foram gradualmente desafiadas pela 
fotografia documental, a arte visual e audiovisual tornaram-se centrais na desconstrução do mito do American Dream

Na contemporaneidade, a cultura visual continua a explorar este conceito, agora sob uma lente mais fragmentada e, muitas vezes, irónica. Nas redes sociais, a estetização do sonho americano permanece viva, aliada muitas vezes a chamada "hustle culture", que promove o trabalho em excesso, e a ideia de atingir o sucesso por quaisquer meios necessários, um indício de que o sonho americano está mais difícil do que nunca de ser atingido. Contudo, essa mesma plataforma também dá espaço para críticas, que hoje são feitas muitas vezes através de memes, vídeos no YouTube, ou TikToks
elementos centrais da cultura visual associada aos Millennials e a Geração Z, que em grande parte já vêm o American Dream como algo do passado.





sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Casas por decorar

Durante o Natal, as casas transformam-se em pequenos contos de fadas, adornadas com bolas coloridas, fitas e luzes brilhantes, num ambiente festivo que remete à celebração coletiva. Muitas famílias orgulham-se de exibir presépios feitos à mão ou herdados de gerações anteriores. Também no carnaval ou no halloween, com serpentinas e paletes de cores, a maioria das pessoas adere às tendências e tradições estabelecidas.

No entanto, sente-se sempre alguma alegria ao decorar a casa e ter a casa decorada, e estas festividades são para muitos a sua fonte de inspiração. É de notar que, em teoria, não é preciso ser natal para se ter um pinheiro em casa.

As pessoas tendem a habitar anualmente em espaços que não refletem o seu estilo pessoal. São limitações financeiras, falta de tempo, pressão social para seguir normas estéticas ou simplesmente indiferença. As decorações disponíveis nas lojas são massificadas sem grande diversidade de estilos e gostos individuais. Os artigos mais únicos tendem a ser feitos à mão e, portanto, mais caros, e criar os próprios não está nas prioridades de pessoas ocupadas. As casas por decorar são um reflexo das expectativas culturais e das tradições, sem lugar para a individualidade.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

“Pop Girlies”: A estética na música feminina

Sabrina Carpenter é o melhor exemplo atual da importância da estética para o sucesso de uma artista. Ela lançou o seu primeiro álbum há quase uma década, mas só recentemente é que se tornou aquilo em que pensamos quando dizemos “pop star” .

O seu sucesso aparente, “da noite para o dia”, não foi devido a uma súbita melhoria da sua habilidade musical, mas sim ao desenvolvimento pelo cantora – ou pelo menos pela equipa de marketing desta – de uma brand pessoal que reproduz uma estética que é aceita pelas audiências. É o cabelo loiro e comprido, com corte de borboleta, são os saltos altos e são as roupas provocativas e maquilhagem “classy”, que referenciam padrões do século XX (vem à mente Marilyn Monroe). É uma sexualidade performativa, em que a experiência visual é tão importante quanto – se não ainda mais que – a experiência auditiva.

Mas isso não é único à Carpenter. Olivia Rodrigo, com o seu estilo dos anos 2000 e Charli XCX, com a referencias às Bratz Doll são outros exemplos de artistas com fama internacional que têm uma brand específica, performativa, muitas vezes com algum apelo sexual, em que modernizam uma estética reconhecida pelo público geral, que irá consumir e interagir com a sua arte.

O meu exemplo favorito deste fenómeno – e o de muitas outras pessoas, dado a fama da artista – é Chappell Roan. Ela faz e reproduz tudo o que foi descrito, mas tem uma característica que a diferencia. Ao contrário dos outros exemplos dados, em que as artistas apresentam estilos aceites, que as deixam serem reconhecidas pela sua beleza, Chappell “enfeia-se”, por falta de uma palavra melhor. A sua maquilhagem e roupas são coloridas, detalhadas, mas extremamente exageradas (“b–, I’ll show you a clown”), semelhante ao estilo de Lady Gaga, que por sua vez referencia o estilo de Drag Queens.

É “over the top”, é estranho e é gay – mas não deixa de ser uma brand.

O apelo estético é, assim, muito evidente nos conteúdos das artistas populares e, sem ele, duvido que as suas reproduções musicais teriam o sucesso que têm, uma vez que estariam incompletas sem as características visuais que as acompanham.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A Indústria Cinematográfica

A indústria do entretenimento e o storytelling visual desempenham um papel crucial na forma como as histórias são contadas e percecionadas, não só de uma forma geral, mas também nos pequenos detalhes que enriquecem as narrativas. Desta vez, venho falar um pouco do mundo cinematográfico e de como a retórica da imagem de Roland Barthes se inclui neste universo a partir de uma visão crítica. Através do uso estratégico de imagens, cores, composições e símbolos, é possível transmitir mensagens complexas de forma imediata e impactante.

Roland Barthes, em obras como Mitologias e A Câmara Clara, explora como as imagens não são apenas representações neutras, mas carregam significados culturais e ideológicos que transcendem o que está literalmente presente. Ele distingue dois níveis de significado na análise da imagem, a denotação, o que a imagem mostra objetivamente, o seu significado literal e a conotação, o conjunto de associações simbólicas culturais e emocionais que a imagem evoca.
No cinema, esta teoria aplica-se de forma direta. A retórica visual no cinema é uma extensão da narrativa que ultrapassa a palavra escrita ou falada, utilizando símbolos e convenções visuais que enriquecem a experiência do espetador.

Para concluir, podemos analisar que em géneros como o terror as sombras e tons escuros prevalecem mantendo uma atmosfera de mistério e perigo adicionando ainda elementos como casas abandonadas e expressões faciais de medo, remetem a arquétipos culturais associados ao medo. Em contrapartida, nos romances comunicam com cores e enquadramentos um ambiente mais quente e reconfortante como características que sugerem à intimidade. 

Vizinhos de vista

                Os passos no corredor, o som característico da porta comum ao fechar-se, as conversas distantes e umas breves superficiais saudações… Ninguém quer incomodar ninguém, ser intrometido. Às vezes ouço gargalhadas de crianças do andar de cima, só ao fim de semana, e já me tornei familiar com a peculiaridade do espirro do vizinho de baixo. Contudo os seus nomes permanecem desconhecidos, só os conheço de vista…. Vivemos tão próximos, dividimos o mesmo espaço, mas somos estranhos uns aos outros. As palavras trocadas são poucas, quase automáticas, deixamos a interação pelo simples reconhecimento da presença do outro. O outro é reconhecido, mas não efetivamente encontrado.

               Mudei-me para este apartamento há um ano e, desde então, o tempo passou sem que surgisse oportunidade espontânea de conhecer com quem o partilho. A forma de convivência atual é a normalizada, contudo, revela-se para mim vazia e desconexa. A proximidade física contrasta com a distância emocional, gerando uma inquietação discreta, mas persistente.

               Já tinha pensado sobre isto antes, mas foi quando o professor desta cadeira abordou o tema, que a questão realmente me despertou. Percebi que afinal se trata de uma experiência bastante comum. Decidi, então, dar um passo contra esta rotina de distanciamento. Vou fazer bolachas e distribuí-las entre os vizinhos. Embora a confeitaria não seja a minha especialidade, vejo esta iniciativa como uma oportunidade de criar um espaço de encontro, ainda que breve. Mesmo que a recetividade seja limitada, espero, ao menos, conhecer os seus nomes. 

Os fins justificam os meios? - A violência em prol de um Bem Maior

 

Nos últimos dias muito se tem falado do caso de Luigi Mangione, que matou o CEO de uma mas maiores empresas de seguros de saúde dos Estados Unidos. Este caso levou-me a refletir bastante num tema: será que a violência é necessária para que haja uma revolução? Até que ponto estamos dispostos a ir para defender o que acreditamos ser justo? Será que a violência, em certas situações, é inevitável? E, se for, estaria justificada se o resultado final trouxesse benefícios para a maioria?

Eu sempre pensei no direito que tenho ao voto, algo que parece tão básico e garantido hoje, mas que, olhando para trás, sei que só foi conquistado por meio de protestos, muitas vezes violentos. Esses movimentos forçaram mudanças que hoje consideramos essenciais. Isso levanta uma pergunta: sem essa violência, esses direitos existiriam atualmente?

Ao olhar para a história, encontramos exemplos que nos forçam a encarar essas perguntas. Penso na Revolução dos Cravos. Foi um momento extraordinário, um marco em que Portugal pôde se libertar de uma ditadura sem que uma gota de sangue fosse derramada durante o movimento. Parece o cenário ideal, mas mesmo ali, a liberdade só chegou depois de décadas de sofrimento e resistência silenciosa, um facto que não podemos ignorar.

Mas nem todas as revoluções seguiram esse caminho. A Revolução Francesa, por exemplo, trouxe conquistas imensas para a humanidade — liberdade, igualdade, direitos fundamentais. Mas o custo? Guerras, violência, vidas perdidas. Da mesma forma, as lutas anticoloniais na África, que conquistaram-lhes a independência, muitas vezes vieram acompanhadas de muita dor, destruição e mortes.

Olhando para esses momentos, fico dividida. É fácil admirar os resultados e esquecer os meios. E parte de mim acaba por acreditar que, sim, os fins justificam os meios — principalmente quando o resultado é uma mudança que transforma as vidas de milhões de pessoas para melhor. Mas outra parte hesita. Até que ponto podemos correr o risco de justificar qualquer ação em nome de um ideal ou bem maior?

Desinformação por imagens nas redes sociais

 

A sociedade vive atualmente um momento em que as imagens ocupam um papel fundamental na informação e comunicação. Existem várias redes sociais e outras plataformas digitais que estão recheadas de conteúdos visuais que captam a atenção de pessoas diariamente. Porém, essa abundância por vezes é aproveitada para espalhar desinformação, criando-se um enorme problema. É possível entender como as imagens podem ser usadas para influenciar, persuadir e falsificar, através da retórica da imagem.

Fotos impactantes normalmente manipulam as emoções do público observador para provocar algum espanto, medo, indignação, empatia, entre outras, sendo que muitas das vezes essas imagens são apresentadas fora de contexto. Os “memes” e gráficos simplificados frequentemente distorcem dados o que potencializa a propagação de narrativas enganosas. Tecnologias mais avançadas podem distorcer a realidade ao criar vídeos falsos que parecem ser extremamente realistas o que coloca um desafio em distinguir ou perceber o que é “real”. Esta distorção da realidade é um problema cada vez maior, especialmente hoje em dia, com a integração da inteligência artificial e das aplicações que a usam.

É preciso de adotar medidas para enfrentar estes desafios impostos pela desinformação. Uma formação adequada ao tema pode ser contemplada no processo educativo para ajudar a interpretar e questionar as imagens, de modo a preparar o público para distinguir a verdade da manipulação. Por outro lado, as plataformas digitais e criadores de conteúdo devem ter a responsabilidade ética de alertar o público de modo a evitar a disseminação de imagens enganosas. A apresentação de factos rigorosos são uma técnica imprescindível para combater este problema.  

A retórica da imagem tem a capacidade de promover conhecimento e enriquecer a comunicação quando é usada de forma responsável. Contudo, quando é usada de forma irresponsável pode originar graves consequências sociais principalmente no contexto da desinformação. Apenas através de uma abordagem consciente e educacional, será possível minimizar os impactos negativos dessa prática, garantindo um ambiente mais confortável e ético. A retórica da imagem é atualmente especialmente relevante, uma vez que as imagens dominam a comunicação, ajudam a entender e criar mensagens que impactam profundamente a perceção e o comportamento das pessoas.

Uma perspetiva sobre a FBAUL

     Estudo numa faculdade de engenharia há 4 anos. Neste tempo fui habituado a trabalho constante, intrinsecamente tenso por obra de testes dia sim dia não, de trabalhos de grupo de 3 cadeiras diferente que têm de ser feitos em paralelo e da própria competitividade criada entre todos os alunos. Neste contexto de avaliação constante para alguns torna-se difícil sequer justificar ir às aulas, estas que por não terem presença obrigatória e por muitas focarem-se em conteúdos mais teóricos, essenciais para a formação de bons engenheiros mas maioritariamente acessórias para quem tem o objetivo de ter boas notas e sobreviver à torrente de trabalho. Essas horas de aulas acabam por ser gastas a estudar, ou a aprendermos por nós próprios o que realmente precisamos de aprender.

A minha faculdade tem também no currículo de todos os cursos uma cadeira obrigatória na área das humanidades, artes ou ciências sociais que pode ser escolhida, mediante a concurso, pelo aluno dentro de uma grande lista de opções sendo muitas delas feitas em outras faculdades.

Com vontade de fugir ao stress ao qual já estava acostumado no meu dia-a-dia sempre soube que iria querer fazer esta cadeira fora das paredes a que já estava habituado e tive a agradável surpresa de ter sido colocado na Faculdade de Belas Artes.

Tive a sorte de já lá conhecer duas amiga minhas, que nas primeiras semanas me mostraram a faculdade. Vir de um curso principalmente teórico e ter contacto com uma realidade académica tão prática foi-me um abre olhos gigantesco para o que até ai eu considerava ser a experiência de "andar na faculdade". As conversas que tive com ambas enquanto visitava os vários laboratórios da faculdade sobre os seus trabalhos atuais e projetos do passado mostravam a paixão que tinham pelo que faziam e o quanto gostavam de ter a oportunidade de o estar a fazer. Este tipo de mentalidade entrou em choque com o que estava habituado da minha faculdade, onde existem bastantes alunos que fazem cursos porque "este curso dá dinheiro" e os poucos que entram na faculdade com gosto e vontade de aprender, exceto casos raros, rapidamente o perdem com o passar dos anos.

Durante o resto das semanas de aulas aproveitei a minha vida de turista, não faltei a nenhuma aula e mantinha sempre a mesma rotina: aula, almoço, cigarro e café. Aproveitava o tempo que passava longe das minhas responsabilidades para me envolver num ambiente que para mim me era alienígena mas bastante bem-vindo ao meu dia-a-dia.

O caminho de volta para a minha faculdade era sempre algo bastante penoso, ter de voluntariamente abandonar este meu oásis para ter de voltar à personificação de um inferno pessoal de ansiedade e pressão custava e o facto de o caminho envolver passar 40 minutos dentro de linhas de metro só colabora esta metáfora.

Tenho plena noção que esta minha idealização da FBAUL vem de uma perspetiva de alguém de fora, acredito que os alunos desta faculdade também tenham os seus projetos com "deadlines" apertadas e também tenham avaliações atrás de avaliações que os impossibilitem de descansar mas não é essa a energia transmitida por quem lá anda. Sinto que esta cadeira deu-me oportunidades de não só ter um novo conhecimento sobre uma área de estudo fora da minha especialização mas também me deu oportunidade de me dar a conhecer toda uma nova realidade de possíveis vivências dentro do mundo académico, e isto é algo que não se aprende numa sala de aula.

O cinema atual


Tenho uma paixão pelo cinema e venho refletindo sobre filmes intitulados feministas ou que abordam o feminismo. No cinema muitas das vezes, mesmo em filmes dirigidos por mulheres ou focados em temas feministas a estrutura narrativa e estética muitas vezes reflete uma perspectiva patriarcal, porque a linguagem cinematográfica predominante foi historicamente moldada por uma sociedade centrada no olhar masculino. Mesmo diretoras e produtoras femininas enfrentam esse desafio de trabalhar dentro de uma gramática visual que reproduz inconscientemente esses padrões. 

Essa dinâmica persiste porque os filmes são vendidos para um público que tem fome dessa visão masculina e patriarcal. influência não apenas quem está por trás das câmeras, mas também como as narrativas são projetadas para um consumo em massa. Filmes que buscam desconstruir essa norma enfrentam dificuldades em transcender o olhar patriarcal, porque o público, incluindo mulheres, internaliza muitos desses padrões ao longo da vida. Mesmo as tentativas de criticar ou satirizar essa dinâmica, como o horror corporal em A Substância, podem acabar reforçando inconscientemente as mesmas normas que buscam desconstruir. 

A inacessibilidade da cultura

A cultura deveria ser acessível a qualquer pessoa, independentemente de classe social, localização geográfica ou condição financeira, no entanto, apresenta-se muitas vezes como algo restrito a um círculo elitizado. Um exemplo claro disso são os museus e exposições. Estes espaços teoricamente são dedicados à aprendizagem, fontes de conhecimento e enriquecimento cultural para toda a sociedade, mas no entanto, acabam por ser lugares exclusivos para uma certa elite social.


Os altos custos de entradas em museus e exposições e a falta de incentivos públicos, fazem com que muitas pessoas não consigam aceder e visitar estes espaços. Os museus cobram, habitualmente, valores elevados para as suas exposições. Torna-os inacessíveis para pessoas que não fazem parte de uma elite, como pessoas da classe trabalhadora ou até pessoas que não vivem em grandes centros urbanos. Parte das pessoas de classe trabalhadora, para além de não terem capacidade económica, dedicam a sua vida a um trabalho das 9 às 17 para poderem sobreviver e não têm oportunidade de visitar estes espaços. Problema este, que se estende ainda ao próprio staff dos museus, cujos horários não permitem uma vida fora do meio de trabalho. Desta forma, a população é mantida numa rotina onde apenas os que privilegiam horários flexíveis conseguem ter acesso a informação e ao mundo cultural.

 É claro que é importante realçar que estes projetos requerem muito investimento e trabalho que tem que ser valorizado, mas deve vir da parte do estado apoiar e valorizar essas iniciativas, de forma a apresentá-las de forma eficaz ao público geral. E felizmente, estas iniciativas a apoiar a arte e a cultura estão cada vez mais presentes. 


A utilização de linguagens mais académicas e intelectuais cria também uma distância do público com a cultura. Muitos museus e exposições, mesmo estando abertos ao público, requerem um certo conhecimento prévio para que as obras apresentadas sejam apreciadas e entendidas pela sua totalidade. Muitas vezes não é apresentado qualquer tipo de contexto ou são apresentadas explicações breves e de difícil interpretação, o que afasta o público que não tem as ferramentas necessárias para respeitar o que vê. Como o observador não entende, encontra-se num ciclo de desinformação, que gera desinteresse. Alguém que procura conhecimento e depara-se com algo inacessível e codificado, sai com uma sensação de alienação e de desconectividade, desvalorizando a exposição e perdendo o interesse para aprender mais.


Desta forma, os museus e exposições são exemplos que demonstram como a cultura pode ser inacessível. Uma experiência cultural, que deveria ser um direito universal, é restrita por um conjunto de fatores, que excluem uma grande parte da sociedade. A verdadeira democratização da cultura, exige uma reavaliação destes fatores, para aproximar todos os níveis sociais e económicos.


O fetichismo das Revistas Femininas dos Anos 2000 no Filme "Como Perder um Homem em 10 Dias"

    No filme americano de 2003, "Como Perder um Homem em 10 Dias", a protagonista Andie é encarregada de fazer um artigo para a revista feminina em que trabalha, sendo a proposta do artigo explicar as 10 piores coisas que farão um homem perder o interesse numa mulher - O título do artigo sendo "Como Perder um Homem em 10 Dias".  A partir desse enredo ela embarca num relacionamento amoroso em que tenta, durante 10 dias, ser a mulher mais "chata" que ela conseguir para assim fazer com que o homem perdesse o interesse. O homem  - Ben - porém, fez uma aposta de aumento salarial que, se ele conseguisse fazer uma mulher se apaixonar por ele em 10 dias, ganharia a aposta e o aumento, enfrentando assim as atitudes "chatas" de Andie, acreditando que esta estava completamente apaixonada por ele.

    Porém, se notarmos o local de trabalho da protagonista e sobre o que ela escreve, é possível notar uma característica marcante do início do século 21 sobre a imagem feminina e quais objetos de analise grandes empresas focavam para vender seus produtos para o público feminino. A ideia de um artigo voltado exclusivamente para o comportamento feminino dentro do relacionamento implica, necessariamente, que a culpada para que ele acabe seja ela própria, em nenhum momento comentando sobre as possíveis "falhas" que um homem pode cometer dentro de um relacionamento para que este acabe. Ou seja, a revista é feita por mulheres, para mulheres, mas ao mesmo tempo as culpa por possíveis falhas em relacionamentos, não deixando margem para o erro masculino. 

    Não somente isso como também, nas principais revistas de moda dos anos 2000, o objeto vendido era a mulher, sendo ela tratada como um produto a ser investigado e taxado para o consumismo. Em nenhum momento a mulher poderia estar satisfeita, pois a revista sempre apresentava matérias de como a mulher poderia ficar mais bonita, mais saudável, mais em forma, mais atraente e etc, a impossibilitando então de estar satisfeita consigo mesma, pois sempre haveria algo e ser melhorado.

    Portanto, durante o filme de 2003, somos relembrados desse fenômeno em massa que ocorreu principalmente naquela década e que, porém, ainda é comum hoje em dia dentro das redes sociais. Demonstrando então como era normalizado e aceitado esse conceito de "mulher em busca da perfeição", sendo a perfeição uma mulher inalcançável, pois sempre terá algo o qual melhorar, e, em outras palavras, sempre terá algo a ser vendido.