Considero-me uma pessoa sensivelmente pessimista. Sou
bastante alegre mas não vale a pena tentar e vir aqui mentir e dizer que sou
otimista quando não o sou. No entanto, o meu pessimismo é de certa forma
contido, impedido de me consumir por completo. Alguma parte do meu cérebro, mesmo
que não pontualmente, impede-me de sentir emoções negativas durante longos períodos,
substituindo os habituais pensamentos negativos com uma paisagem bonita que
nunca tinha visto, ou relembra-me que a vida já foi bastante pior do que
naquele momento e, de forma quase imediata, os pensamentos se dissipam com as
correntes suaves do vento. E eu sinto-me bem.
Considero então, esta peculiaridade uma espécie de programa,
um antivírus, que me protege de mim própria e do poder que a mente tem sobre si
mesma, que foi instalado no meu sistema e que construiu paredes para conter estes
pensamentos demasiado inquietantes. Com pequenas janelas para poder
relembrar-me da minha condição humana, é assim que coexistimos no meu
organismo.
Hoje, com o intuito de fazer uma reflexão pessoal, olhei
para a janela de uma das fachadas e relembrei-me do porquê destas fachada nem
terem porta. Se estes aglomerados multiformes coexistissem ao meu lado, passeando
livremente e sem supervisão, eu penso que já nem teria esta minha casa. Um
residente particular da minha mente passa os dias a me chamar a atenção quando me
encontro na faculdade. Ele, como eu, tem uma rotina. E as nossas são bastante
interligadas. Para poder contar esta história vou dar-lhe o nome provisório de
Abílio.
Encontro-me eu, excitada para um novo
semestre na licenciatura de Design de Comunicação, pronta para realizar
trabalhos que colocarei no portfólio como medalhas num blusão verde com padrões
de camuflagem. Abílio ainda se encontra em estado de hibernação. Chego a
faculdade e sou automaticamente bombardeada com a proposta para o primeiro
trabalho do ano. Ouço o professor a ler o enunciado críptico, escrito ainda com
o antigo acordo ortográfico, e sinto como que raios do sol a proliferarem-se
pelo meu corpo. Sinto o calor da energia, a criatividade a passear pelas minhas
conexões nervais até chegar à ponta dos meus dedos que apoiam a caneta no meu
caderno e que aponta rapidamente estas ideias. Subitamente ouço um bater num
vidro. É o Abílio, que ignoro com facilidade devido ao turbilhão de carga
elétrica.
As semanas que se seguem, Abílio faz ritmos e batuques no
vidro da sua janela sempre que me sento para me concentrar e trabalhar. Quase
como que me perseguisse, sabe exatamente quando tocar estas melodias, ainda não
muito ensurdecedoras naquela janela. O trabalho começa a desenvolver-se e, com
isso, uma carga de stress aloja-se na minha coluna e um vibrar constante no meu
tímpano (provocado pelo Abílio) que não me permite descansar bem.
E, num momento “completamente inesperado”, Abílio dá um toque
a mais na janela, que se estilhaça completamente. O cair destes pedaços afiados
no chão provoca uma forte vibração cerebral, e eu finalmente sinto Abílio,
consumido por raiva tempestuosa, a sair pela janela fora para ir comprar uma
janela nova. A intensidade desta raiva provoca uma vaga de mau tempo.
A chuva mantém os transportes públicos impedidos de funcionar
corretamente, impedindo Abílio de ir para casa, e obrigando o meu mau-estar e
falta de ânimo da minha parte, levando-me à procrastinação. A trovoada de
signos e significantes intensifica-se, as nuvens que agora povoam os meus
pensamentos tornam-se cada vez mais cinzentas e as rajadas de vento de
inseguranças, medo e falta de confiança movem-se a 100km por hora. Tentando controlar
a tempestade, procuro compreender de forma pragmática a área da meteorologia (sem
sucesso), até que me sento numa cadeira de auditório. Não é uma aula de meteorologia
mas até que começo a entender este fenómeno.
Os ventos provenientes do hemisfério esquerdo do meu cérebro
esfriam o quarto de Abílio com a eminente compreensão de que o que me agrada em
ser criativa e fazer trabalhos que puxem por lados mais exóticos da minha
mente, são puramente efémeros. A ideia de que, no mundo do consumo capitalista
em que vim nascer, nada do que estou a fazer agora com gosto, sem rigor, por
diversão e por amor, está realmente a preparar-me para daqui a uns anos é, de
facto, arrepiante. O mundo está cada vez a tornar-se mais material, cada vez
mais estes mapas de significados assumem-se como verdades universais e cegam as
pessoas para o verdadeiro prazer e misticidade que reside no material: o seu
processo. E, no caminho, esta ideologia começa a vendar com cachecóis as
pessoas à nossa volta para verem o mesmo preto, na promessa de proteger do mau
tempo.
Abílio vê, na primeira “pessoa”, este inverno a aproximar-se.
E eu sinto Abílio. Sinto os calafrios nas costas de ter de me conformar com
estes ideais, as frieiras nas minhas mãos de ter de trabalhar mesmo sem as
sentir, o nariz completamente entupido de ideias que, como o ar, nem entra nem
saem, e quando saí, é só muco. Sinto todo este futuro a aproximar-se e sinto-me
impotente. E para me proteger, coloco as 20 camadas de camisolas interiores com
uma etiqueta que cita: 100% expectativas baixas. “Afinal, como é que alguém é
capaz de gostar do seu trabalho quando está prescrito o que irá fazer para o
resto da sua vida?” diz (mais ou menos) Marx nas suas palavras projetadas no Grande Auditório.
Assim, encontro o meu processo criativo completamente congelado,
num equilíbrio desequilibrado de não me sentir cativada para trabalhar e me
conhecer através do trabalho, e ter de trabalhar de qualquer forma. E penso só
na possibilidade de eu poder ser só mais um parafuso nesta maquinaria
masoquista em que nos cravam um X na cabeça só para nos poderem apertar cada
vez mais a este sistema. Eu não quero ser só mais uma cabeça flangeada.
Eu entendo o Abílio, ser condenado a representar essa
realidade onde a produção é mais importante do que a criação, e ter de fazer
parte dela sem emenda nem discussão. Ter de coexistir consigo mesmo, o que em
circunstâncias normais já é complicado (na minha experiência), num ciclo sem fim
de trabalho mistificado que produz mercadoria mistificada e que é trocado por dinheiro mistificado sum processo infindável.
E o Abílio não me deseja mal, somente quer manter essa
realidade tangível. Mas o vidro era fraco. E enquanto as janelas forem de vidro,
irão sempre partir-se, é uma questão de tempo. Mas talvez, daqui a uns anos, Abílio
possa só sair pela janela e aproveitar o sol que entra em mim.