sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O 25 de abril foi domesticado?

        O 25 de Abril de 1974 é lembrado como o dia que trouxe liberdade e democracia a Portugal. Embora marque a queda do regime que vigorava, uma ditadura que restringia liberdades e direitos fundamentais, a essência do 25 de abril vai muito além de um único dia. Foi uma revolução coletiva, fruto de uma longa resistência com ações concretas, como ocupações de terras, fábricas e outros espaços. As ações, disruptivas e transformadoras, ultrapassavam o simbolismo: eram reivindicações urgentes por mudanças estruturais e justiça social. Foi muito mais do que um evento pacífico…

        Contudo, ao longo do tempo, o seu espírito revolucionário parece ter sido domesticado. Atualmente, a celebração do 25 de Abril é geralmente reduzida a um ritual vazio, desconectado das lutas sociais contemporâneas. Um feriado seguro e apolítico, em vez de um chamado à ação. Quando no fundo, trata-se de um processo contínuo que exige não só reflexão sobre o presente, mas também ação pelo futuro.

        Apesar do 25 de Abril ser socialmente aceite (de uma forma geral), as ações atuais que seguem os seus ideais são frequentemente desvalorizadas, e aqueles que lutam por essas causas são muitas vezes marginalizados e vistos como demasiado “radicais”. A disrupção, que foi o motor da revolução dos cravos, tornou-se socialmente desconfortável quando associada às lutas contemporâneas. São exemplos dessas lutas os movimentos pela justiça climática, pelo direito à habitação e pelos direitos laborais, entre tantos outros que continuam a reivindicar um mundo mais justo e solidário.

        Portanto, a verdadeira homenagem ao 25 de abril não se deve esgotar em comemorações nostálgicas, exige também um compromisso. Cada dia deve ser uma oportunidade para viver e construir os seus valores. Festejar abril é aceitar a necessidade de desafiar, questionar e lutar, mesmo quando isso incomoda. Afinal, o 25 de Abril foi, acima de tudo, uma revolução que só se concretizou porque houve quem ousasse agir. 

A Leveza do Ser


Não me lembro da primeira vez que me apercebi que já tinha sentido crítico, vá livre-arbítrio, o primeiro às vezes ainda me falta. Que já conseguia analisar o meu quotidiano, pensar sobre o que me rodeava e tomar “decisões”, sem precisar de rodinhas. Contudo lembro-me da forma como me senti, liberdade pura, um infinito de possibilidades e todos aqueles “devias” ou “tens que” despareceram. Momentos assim são raros, porque isto é apenas um lado da moeda complexa que é o livre-arbítrio, do outro lado está uma espécie de niilismo dramatizado. A constante oscilação entre pensamentos:  Às vezes, sinto que a vida é idêntica à descrita na Insustentável leveza do ser de Kundera, é tão tão leve, que me questiono se há algo que realmente importe, alguma decisão, alguma ação ou se a norma é esta leveza passageira, que desaparece de seguida. Juntamente com divagações pela procura de um peso real ou uma consequência duradoura e quando essa etapa falha e percebemos que não há grandes expectativas ou responsabilidades a carregar. Pensamos, wow, que libertador. A vida flui e isso volta-nos a dar aquela sensação de liberdade. Mas, depois, surge uma sensação de vazio profundo e daí surgem as perguntas:  Porque, se nada tem peso, se nada fica, o que é que realmente estamos a fazer? Para onde estamos a ir? E não é triste, é só... estranho. Como se fosse difícil encontrar algo que realmente faça a diferença, algo que valha a pena.

Surgem então as resoluções: No fundo, isso faz-me pensar que talvez a busca incessante por um grande sentido seja apenas uma ilusão.

Há uma sensação de suspensão, como se estivéssemos a viver sem saber para onde estamos a caminhar, ou sem saber se vale a pena caminhar em linha reta. E, talvez, esse vazio não seja uma maldição. No fundo, talvez seja justamente o que nos dá liberdade para simplesmente ser. Não precisar de uma razão profunda para existir, não precisar de uma explicação para cada momento. Aceitar que a vida, tal como ela é e estar bem com isso.

Sem o peso do "porquê", podemos viver cada momento com mais calma, mais espaço para ser quem somos, sem pressões. Talvez, a maior paz é aceitar que, embora nada tenha um grande peso, cada momento, ainda assim é nosso. E isso é suficiente…

Este ciclo de pensamentos, divagações, liberdade, perguntas e resoluções momentâneas, definem a leveza e o seu vazio inquietante (a dança do efémero). Para escapar, buscamos construir alguma coisa de importante, procuramos rotinas e compromissos, queremos raízes, prendemo-nos à realidade, tudo para sentirmos um propósito neste mundo. Sem nos aperceber que entramos no ciclo do peso, a leveza e o peso complementam-se, um liberta-nos do fardo das expectativas e o outro dá-nos substância e prende-nos à terra. Ainda não vivi suficiente tempo para saber, mas anseio descobrir que passamos a vida a saltitar de um ciclo para o outro.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Saussure e o livro Casa das estrelas

Uma das ideias apresentadas por Saussure no livro Curso de linguistica geral (2006) é que os signos são como “átomos” da linguagem, compostos por duas partes principais: o significante e o significado. O significante é a imagem acústica ou gráfica utilizamos para representar algo, é a manifestação ou o veículo do signo. O significado é a ideia que o signo trás a nossa mente.

Para o linguista suíço, o signo é arbitrário, pois a relação entre significante e significado é arbitrária, ou seja, não há uma ligação necessária entre a manifestação da palavra (significante) e a ideia a qual ela se refere (significado). Podemos observar isto facilmente: idiomas diferentes usam significantes diferentes para expressar o mesmo significado.

O livro Casa das estrelas, de Javier Naranjo (2013), é uma coletânea deste professor colombiano de definições que os seus alunos do ensino primário deram a palavras nas aulas de espanhol. Uma ideia simples, mas poderosa. As associações das crianças aos signos revelam a arbitrariedade e subjetividade da linguagem, como por exemplo nas suas definições de “Criança” no livro:

“Tem ossos, tem olhos, tem nariz, tem boca, caminha e come e não toma rum e vai dormir mais cedo.”
(Ana María Jiménez, 6 anos)
 (p. 39)

“Humano feliz.”
(Jhonan Sebastián Agudelo, 8 anos) 
(p. 39)

“O que estou vivendo é criança.”
(Johanna López, 10 anos)
 (p. 39)

“Danificada da violência.”
(Jorge A. Villegas, 9 anos)
 (p. 40)

“Responsável pelo dever de casa.”
(Luísa María Alarcón, 8 anos) 
(p. 41)

Estas definições realçam como a lógica das crianças em relação aos signos é diferente daquela dos adultos. A primeira definição, de Ana María Jiménez, mostra que ela compreende "criança" como uma soma de partes físicas e comportamentais, selecionando no seu campo de escolhas características associadas a uma criança. Ana María organiza essas características de forma coesa, unindo-as numa frase completa, apesar de simples. Em outras palavras, a sua forma de definir “criança” demonstra um pouco das relações entre o paradigma (o campo de escolha) e o sintagma (o que já foi escolhido e dito) infantil.

O livro Casa das estrelas é uma entre muitas obras que ilustram que a linguagem é um sistema vivo, moldado pela subjetividade e pelo contexto, estando em conformidade com as ideias de Saussure sobre a arbitrariedade dos signos e a natureza social da língua.

Livros consultados: 

Naranjo, J. (2013). Casa das estrelas: O universo contado pelas crianças. São Paulo: Editora Foz.

Saussure, F. (2006). Curso de linguística geral (27ª edição). São Paulo: Cultrix.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Stream of consciousness II

    (As we lay down, your head on my chest, a sunflower behind your left ear; I feel ashamed for something that wasn’t my fault. Suddenly, a curious thought comes to my mind: maybe I didn't have a childhood — I dreamt it all.)

 

      Esquece a fome e vem comigo ver navios. Faz hoje um ano e meio que te matei com os lábios.

    Espreito-me no espelho desconfiada e assusto-me com o espaço que amiúde me ocupas nos braços como que estranho quando cá não estás. Debalde tento puxar-te dessa penumbra mas tu agarras-te ao ontem com unhas e dentes. Pergunto-me sempre Será que foi alguma coisa que disse que fiz que sou — nunca te satisfarei. Ou é porque um calor até aos miolos ou um frio que te enregela os ossos ou uma tristeza sem explicação. Percorres descalça de uma ponta a outra a extensão do frio, magra e da idade que tens, como de resto não poderia deixar de ser. Sabes: essa dor não te fica nada bem. Não combina com os teus olhos. Mas como já é hábito tu não dás importância a nada do que eu te digo e descansas-me em cima do peito, benfazeja, falsa.

domingo, 17 de novembro de 2024

Costumava remar.

Na altura fui incentivado a juntar-me um clube de remo por colegas da minha secundária e facilmente aceitei por sentir que me deveria esforçar mais para ter um estilo de vida ativo e por, apesar de nunca ter sido versado em qualquer tipo de desporto, sempre ter tido uma certa admiração pelo mar e pelos desportos feitos na água.

A minha falta de aptidão desportiva não decidiu dar tréguas a este meu novo hobby o que fazia com que tivesse sistematicamente a pior performance do meu escalão. Apesar de tudo gostava do desporto, das pessoas que lá andavam, do espírito desportivo que havia entre atletas, das regatas a que ia, mas principalmente da rotina que os treinos criavam na minha vida. Estes factos fizeram-me continuar a treinar apesar de pelo caminho terem desistido de treinar os amigos que me tinham introduzido ao desporto.

Digo-te que remar é uma ação completamente monótona. O ato de remar implica sempre exatamente os mesmo movimentos, movimentos estes que são trabalhados para serem sempre nos “timings” certos, o corpo deve estar sempre na posição perfeita e toda a ação deve ser harmoniosa do princípio ao fim. A força exercida, principalmente pelas pernas, deve ser sempre constante durante todo o movimento, força esta que não é pouca, deve ser mantida igual durante o treino todo, que muitas vezes implicava séries de exercício que variavam de 30 minutos a 1 hora e meia. 

Isto e o facto de treinar seis vezes por semana fizeram com que na altura eu sentisse que estava num transe, a única maneira de lidar com a carga física durante o treino era abstrair-me do que estava a fazer “desligando” o cérebro durante as 2 horas de treino, conjugado com o cansaço que sentia durante o dia seguinte fez com que a minha perceção do tempo ficasse deturpada e sentisse que estava constantemente num limbo até ao treino seguinte. O ano e meio em que lá estive passou a correr.

Estranhamente não olho para trás para esta altura e vejo a situação de vida que descrevi acima como algo negativo, pelo contrário. Na altura era uma pessoa infeliz comigo próprio, sentia que estava num período de transição pessoal - já não era a pessoa que costumava ser, não gostava da pessoa que era nesse momento e não sabia o que queria ser no futuro. Este impasse pessoal, em retrospectiva bastante egocêntrico mas muito próprio para a idade, fazia-me procurar tudo e qualquer coisa que me abstraísse da minha realidade presente: jogos, companhia de amigos, música, etc., e na altura o desporto preencheu perfeitamente este buraco que precisava de encher na minha vida. 

Eventualmente acabei também eu por desistir do desporto, mas até hoje me questiono como é que tenho tanto amor e carinho por uma altura da minha vida da qual me lembro tão pouco. Sinto que parte disso vem de sentir que esse período de transição pessoal foi bastante importante para o desenvolvimento da pessoa que sou hoje, completamente diferente da que era na altura, mas não consigo de todo descartar a influência que a mera decisão de aceitar um convite de um amigo de começar a treinar com ele teve na minha vida. Até hoje mantenho esse mecanismo de defesa pessoal de tentar me isolar do mundo à minha volta para me salvaguardar, não sinto que isto seja algo positivo de todo para mim próprio mas é algo que já me ajudou bastante e moldou um pouco a minha maneira de ser e estar. 

Um dia gostava de voltar a remar para tentar perceber melhor se realmente tenho amor ao desporto ou se este sentimento foi apenas algo fruto da necessidade de me agarrar alguma coisa mas entretanto contento-me com a saudade de algo que pode ter nunca existido.


sábado, 16 de novembro de 2024

Marie Antoinette

 

Todos sabemos quem é a Marie Antoinette. Ultimamente, até se viram muitos disfarces de Halloween que representavam a rainha. Quando pensamos nesta figura, poder-nos-á vir à mente uma imagem da monarca no século XVIII, rodeada de luxo dourado, que diz aos seus súbditos empobrecidos para comerem brioche. Ou, talvez, a rainha, desgraçada, na Place de la Révolution, pronta para ser guilhotinada por alta traição. Seja como for, esta personagem histórica terá sempre um caracter mitológico e político atemporal.

No outro dia, fui a casa de uma pessoa e estava pendurado na parede de um corredor um retrato da Marie Antoinette. Quando perguntei à pessoa o porquê de ter esta monarca pendurada como memorabilia decorativa, foi-me dito que tinha estima à condição feminina e vulnerável da Marie Antoinette.

É popularmente conhecido que a rainha teria dito (supostamente) “Que comam brioche” quando fora informada da miséria e da fome que fustigava a população gaulesa na era do reinado de Luís XIV. Este ditado tornou-se uma das anedotas mais emblemáticas da cultura francesa, e foi mencionado por Rosseau na sua autobiografia “Les confession”, que passo a citar:

“Finalmente eu lembrei-me do expediente de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham pão, e que respondeu: «Que comam brioche.»”

— Jean-Jacques Rousseau, “Les confession”, traduzido para português

Marie Antoinette, além de ser um símbolo de opulência aristocrática e poder absoluto, é também um ícone altamente ideológico e político. Existe um constante debate se ela seria uma frívola vítima ou uma vilã de um sistema social que lhe estava associado. O facto de Marie Antoinette ser tão relevante até à era atual na cultura pop e de se ter tornado num artefacto comercial lembrou-me de temas cruciais mencionados na teoria crítica da escola de Frankfurt.

A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt foi um movimento, protagonizado por filosófos como Marcuse, Walter Benjamin, Horkheimer, Adorno, que emergiu depois do período da Segunda Guerra Mundial. O movimento tinha como herança o percurso ideológico e metodológico de Karl Marx e nasceu devido à ortodoxia filosófica dentro do pensamento comunista e ao descontentamento com a sua aplicação política. Portanto, esta escola virou o seu foco de estudo para as raízes desse mesmo marxismo no qual não encontraram respostas para a emergência do capitalismo.

Esta nova vertente filosófica permitiu um deslocamento das estruturas simbólicas daquilo que são as formas de vida, materializadas nas práticas sociais, na formação da personalidade individual e nos diferentes padrões culturais, estando estes inseridos no cenário pós-guerra e do crescimento do capitalismo e da globalização.

É precisamente na crítica de Adorno e de Horkheimer que se fala da indústria cultural como meio de propagação do capitalismo, no qual se dá uma desumanização das relações e dos significados culturais originais. A crítica defende que a transformação cultural na sociedade moderna sucumbe a uma estética superficial que substitui a apreciação crítica e histórica pela satisfação consumista, promovendo uma relação de alienação com a cultura e a história.

Considero, então, que a utilização da figura de Marie Antoinette como elemento de decoração se trata de um exemplo da tese de Adorno e Horkheimer por existir a transformação de uma figura histórica num produto da indústria cultural. Por se ter tornado um ícone da cultura pop contemporânea, o uso e o culto da sua imagem pode significar uma rutura com as suas associações históricas e tornar-se num mero objeto estético, especialmente por ser reproduzido e comercializado em massa, desprovido do seu próprio peso simbólico.

Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, explicita o fenómeno da perda de “aura” dos artefactos quando estes são reproduzidas em massa. O conceito de “aura” refere-se à autenticidade e singulariedade que uma obra possui dentro do seu contexto original. Esta perda de aura, portanto, segundo Benjamin, é uma forma de alienação cultural: o público consome a imagem de uma personagem histórica complexa sem refletir sobre a sua relevância.

Assim, poderá a utilização da imagem da rainha, através de um quadro, transformá-la num “produto” que passe a ser consumido isento do seu contexto? Ou será esta uma forma de banalização e de alienação cultural que reforça o status quo?

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Roupa invisível e um quarto só seu

Nós seres humanos estamos sempre a vestir uma camada invisível de roupa que metaforicamente refere-se à cultura. Digo isso pois não importa o que de fato nos esteja a vestir ou a temperatura em questão, nus nunca estaremos, uma vez que estamos sempre acompanhados de uma bagagem visceral que nada mais é do que nossa subjetividade.
        Estamos enquanto indivíduos profundamente condicionados a “ver” e compreender o mundo através de lentes que nos foram dadas, nossos olhos adquirem uma certa dimensão social. Penso então na sorte de quem foi iluminado com tais caminhos reflexivos em direção a compreensão da natureza humana e sua relação com a cultura, mas no meu caso posso afirmar que minhas reflexões limitam-se à medida desta tal cultura e que o meu mundo precisa separar-se de si próprio para que possa pensar, afinal sou o mundo e é preciso separar-me do mesmo, até restar só a mim.
        Fui suscitada a refletir sobre minha própria subjetividade e capacidade de pacto com tudo aquilo a qual eu fora exposta. O que me pertence? O que me foi enfiado goela abaixo? Seria eu apenas mais uma vítima da socialização e da cultura? Seria vítima a palavra correta para me referir ao processo vitalício de formação da subjetividade individual? Concluo então que é preciso transgredir para coexistir e refletir a respeito do que nem todos os indivíduos têm o privilégio de poder vir a vislumbrar: A humanidade a pensar sobre o mundo é o mundo a pensar sobre si próprio. 
Além disso, este tema chegou a mim num excelente momento, enquanto me encontro a ler algo muito especial: “Um quarto só seu” de Virginia Woolf. Resumidamente o livro trata-se de um manifesto que fala sobre mulheres e ficção. Tal tema aparentemente muito simples ganha grande profundidade, à medida que a autora inglesa o aborda relacionando-o com a condição de ser mulher e o que isto significava em meados do século 20. Ela sugere portanto que todas as mulheres deveriam ter um quarto só seu, onde pudessem ter as condições propícias e básicas necessárias para entrar em contato com suas mais profundas reflexões, tendo em vista a série de obstáculos orquestrados pelo patriarcado no mundo fora deste imaginário e seguro quarto.
Imaginemos então, analogamente ao livro, que a partir de uma determinada idade fossemos todos trancados em um quarto, com o intuito de “despertar”.... aprender a ver a vida longe das lentes da cultura, afinal tal não se estabelece no campo da necessidade. Será que seríamos capazes de identificar o efeito do coletivo em nós? Será que isso é sequer possível? Limito-me a pensar que o isolamento poderia vir a ser minimamente esclarecedor e talvez um bocado redundante, tendo em vista que a cultura é tão profundamente integrada à condição de existir que já está pra lá da carne humana. 

Ilusão da Inovação

 A inovação é o símbolo da modernidade, promete uma vida mais fácil e conectada com produtos como automóveis, aviões, aparelhos médicos e telemóveis. Mas esta ideia de progresso oculta várias contradições e consequências indesejáveis, apresentando um avanço ilusório que preferimos não questionar.

Os carros, por exemplo, são concebidos para impressionar, não para durar, e a inovação torna-se uma montra de produtos que rapidamente se tornam obsoletos, não venham já assim da fábrica, e que são, muitas vezes, propositadamente difíceis de arranjar. A promessa do progresso oculta a realidade de produtos de vida curta, logo substituídos.

Por trás destes, estão trabalhadores em condições intensas e, muitas vezes, perigosas. Em vez de dignificar, a inovação desumaniza, tratando o trabalhador como uma peça descartável para aumentar a produtividade e o lucro. Assim, aquilo que prometia melhorar a vida transforma-se em alienação e perda de identidade para o trabalhador.

A produção acelerada provoca poluição e exploração de recursos naturais, gerando resíduos electrónicos e industriais. A inovação é apresentada como sustentável, mas na prática, o custo ambiental é elevado, e o "futuro verde" não passa de uma promessa vaga enquanto a natureza suporta as consequências.

A inovação revela-se ainda um ciclo necessário de consumo, obsolescência e insatisfação. Não é permitido viver sem telemóvel, e quanto melhor ele for, melhor é a nossa vida. Vivemos à espera do próximo produto sem alcançar uma verdadeira evolução, tornando-nos dependentes de novidades passageiras que, em vez de libertar, nos aprisionam.

É um mito que promete melhorar a vida, um ciclo de consumo e desperdício, no qual celebramos superficialmente cada novo lançamento.

Uma tempestade num copo de água.

Considero-me uma pessoa sensivelmente pessimista. Sou bastante alegre mas não vale a pena tentar e vir aqui mentir e dizer que sou otimista quando não o sou. No entanto, o meu pessimismo é de certa forma contido, impedido de me consumir por completo. Alguma parte do meu cérebro, mesmo que não pontualmente, impede-me de sentir emoções negativas durante longos períodos, substituindo os habituais pensamentos negativos com uma paisagem bonita que nunca tinha visto, ou relembra-me que a vida já foi bastante pior do que naquele momento e, de forma quase imediata, os pensamentos se dissipam com as correntes suaves do vento. E eu sinto-me bem.

Considero então, esta peculiaridade uma espécie de programa, um antivírus, que me protege de mim própria e do poder que a mente tem sobre si mesma, que foi instalado no meu sistema e que construiu paredes para conter estes pensamentos demasiado inquietantes. Com pequenas janelas para poder relembrar-me da minha condição humana, é assim que coexistimos no meu organismo.

Hoje, com o intuito de fazer uma reflexão pessoal, olhei para a janela de uma das fachadas e relembrei-me do porquê destas fachada nem terem porta. Se estes aglomerados multiformes coexistissem ao meu lado, passeando livremente e sem supervisão, eu penso que já nem teria esta minha casa. Um residente particular da minha mente passa os dias a me chamar a atenção quando me encontro na faculdade. Ele, como eu, tem uma rotina. E as nossas são bastante interligadas. Para poder contar esta história vou dar-lhe o nome provisório de Abílio.


Encontro-me eu, excitada para um novo semestre na licenciatura de Design de Comunicação, pronta para realizar trabalhos que colocarei no portfólio como medalhas num blusão verde com padrões de camuflagem. Abílio ainda se encontra em estado de hibernação. Chego a faculdade e sou automaticamente bombardeada com a proposta para o primeiro trabalho do ano. Ouço o professor a ler o enunciado críptico, escrito ainda com o antigo acordo ortográfico, e sinto como que raios do sol a proliferarem-se pelo meu corpo. Sinto o calor da energia, a criatividade a passear pelas minhas conexões nervais até chegar à ponta dos meus dedos que apoiam a caneta no meu caderno e que aponta rapidamente estas ideias. Subitamente ouço um bater num vidro. É o Abílio, que ignoro com facilidade devido ao turbilhão de carga elétrica.

As semanas que se seguem, Abílio faz ritmos e batuques no vidro da sua janela sempre que me sento para me concentrar e trabalhar. Quase como que me perseguisse, sabe exatamente quando tocar estas melodias, ainda não muito ensurdecedoras naquela janela. O trabalho começa a desenvolver-se e, com isso, uma carga de stress aloja-se na minha coluna e um vibrar constante no meu tímpano (provocado pelo Abílio) que não me permite descansar bem.

E, num momento “completamente inesperado”, Abílio dá um toque a mais na janela, que se estilhaça completamente. O cair destes pedaços afiados no chão provoca uma forte vibração cerebral, e eu finalmente sinto Abílio, consumido por raiva tempestuosa, a sair pela janela fora para ir comprar uma janela nova. A intensidade desta raiva provoca uma vaga de mau tempo.

A chuva mantém os transportes públicos impedidos de funcionar corretamente, impedindo Abílio de ir para casa, e obrigando o meu mau-estar e falta de ânimo da minha parte, levando-me à procrastinação. A trovoada de signos e significantes intensifica-se, as nuvens que agora povoam os meus pensamentos tornam-se cada vez mais cinzentas e as rajadas de vento de inseguranças, medo e falta de confiança movem-se a 100km por hora. Tentando controlar a tempestade, procuro compreender de forma pragmática a área da meteorologia (sem sucesso), até que me sento numa cadeira de auditório. Não é uma aula de meteorologia mas até que começo a entender este fenómeno.

Os ventos provenientes do hemisfério esquerdo do meu cérebro esfriam o quarto de Abílio com a eminente compreensão de que o que me agrada em ser criativa e fazer trabalhos que puxem por lados mais exóticos da minha mente, são puramente efémeros. A ideia de que, no mundo do consumo capitalista em que vim nascer, nada do que estou a fazer agora com gosto, sem rigor, por diversão e por amor, está realmente a preparar-me para daqui a uns anos é, de facto, arrepiante. O mundo está cada vez a tornar-se mais material, cada vez mais estes mapas de significados assumem-se como verdades universais e cegam as pessoas para o verdadeiro prazer e misticidade que reside no material: o seu processo. E, no caminho, esta ideologia começa a vendar com cachecóis as pessoas à nossa volta para verem o mesmo preto, na promessa de proteger do mau tempo.

Abílio vê, na primeira “pessoa”, este inverno a aproximar-se. E eu sinto Abílio. Sinto os calafrios nas costas de ter de me conformar com estes ideais, as frieiras nas minhas mãos de ter de trabalhar mesmo sem as sentir, o nariz completamente entupido de ideias que, como o ar, nem entra nem saem, e quando saí, é só muco. Sinto todo este futuro a aproximar-se e sinto-me impotente. E para me proteger, coloco as 20 camadas de camisolas interiores com uma etiqueta que cita: 100% expectativas baixas. “Afinal, como é que alguém é capaz de gostar do seu trabalho quando está prescrito o que irá fazer para o resto da sua vida?” diz (mais ou menos) Marx nas suas palavras projetadas no Grande Auditório.

Assim, encontro o meu processo criativo completamente congelado, num equilíbrio desequilibrado de não me sentir cativada para trabalhar e me conhecer através do trabalho, e ter de trabalhar de qualquer forma. E penso só na possibilidade de eu poder ser só mais um parafuso nesta maquinaria masoquista em que nos cravam um X na cabeça só para nos poderem apertar cada vez mais a este sistema. Eu não quero ser só mais uma cabeça flangeada.

Eu entendo o Abílio, ser condenado a representar essa realidade onde a produção é mais importante do que a criação, e ter de fazer parte dela sem emenda nem discussão. Ter de coexistir consigo mesmo, o que em circunstâncias normais já é complicado (na minha experiência), num ciclo sem fim de trabalho mistificado que produz mercadoria mistificada e que é trocado por dinheiro mistificado sum processo infindável.

E o Abílio não me deseja mal, somente quer manter essa realidade tangível. Mas o vidro era fraco. E enquanto as janelas forem de vidro, irão sempre partir-se, é uma questão de tempo. Mas talvez, daqui a uns anos, Abílio possa só sair pela janela e aproveitar o sol que entra em mim.


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A Imigração e a Alienação

Antes de me mudar para Portugal, estava entusiasmada com a ideia romântica de me reinventar num novo lugar, de ter uma nova oportunidade de vida com um começo "em branco". A realidade, no entanto, foi bem diferente.

Imigrar — e ainda mais imigrar sozinha — significa deixar para trás tudo o que se é. É abrir mão dos aspectos do meio que moldaram a nossa identidade, como a língua, a cultura, a família e os amigos. Este processo de deixar de ser quem éramos para nos reconstruirmos é longo, difícil e muitas vezes doloroso, uma experiência que me lembra o conceito de alienação de si de Marx, como uma fratura no Eu. Ao nos afastarmos das nossas raízes, surge essa sensação de nos estranharmos a nós próprios.


Durante o início da adaptação em um novo país, é comum que se tomem decisões que anteriormente não fariam sentido para nós, com a intenção de melhor se integrar. Às vezes, a percepção de que a própria identidade mudou ocorre em momentos banais. Por exemplo, eu percebi que já não me conhecia quando queria muito ir a um evento que exigia a compra de bilhete em grupo, e rapidamente percebi que nenhuma das minhas novas amizades se juntaria a mim nesse evento, que tinha tanto a ver com a minha identidade. O descompasso entre as novas amizades e os próprios gostos pessoais, juntamente com outras decisões que parecem não refletir a nossa identidade, são sinais dessa fratura e alienação de si.

Precisei reavaliar e reconstruir (novamente) a minha vida, reconectando-me comigo mesma. A transformação pessoal num ambiente novo tem muitos aspetos positivos: novas perspectivas, novos costumes e novos aprendizados que nos podem enriquecer culturalmente, ampliar a nossa visão e ajudar-nos a crescer. Este processo de adaptação cria uma nova subjetividade, alterando a forma como nos relacionamos com o mundo e nós mesmos.

Com o tempo, as coisas vão se encaixando e, a cada dia, sentimo-nos mais integrados na cultura local. Ao mesmo tempo, o imigrante que regressa ao seu país natal para visitar a família depois de muito tempo percebe que já não se sente completamente pertencente à sua cultura de origem, nem à cultura do país onde mora. Essa experiência ensina que o “Eu” pode transcender culturas, não estando necessariamente preso a um contexto cultural específico.

A imigração pode ser uma experiência desafiante que redefine de forma intensa toda a subjetividade de uma pessoa, alienando-a de tudo o que tornava o Eu, Eu, mas também revela o quão adaptável é o ser humano.


Símbolos Visuais da Cortina de Ferro

A “Cortina de Ferro” surgiu como um símbolo de divisão durante a Guerra Fria, simbolizando a fronteira ideológica e física que — e, de certa forma, ainda — separa a Europa Oriental da Ocidental. As representações visuais dessa divisão não apenas reforçaram as narrativas geopolíticas, mas também moldaram a perceção popular no mundo, que retrata o Leste Europeu como um espaço de mistério, perigo, e opressão. A cultura visual ocidental, através de uma ampla variedade de media — incluindo cartazes, fotografias, filmes, e publicidade —, contribuiu para a criação de uma linguagem simbólica que definia e, por vezes, caricaturava a rivalidade “Oriente vs. Ocidente”.


Na propaganda ocidental, a Cortina de Ferro simbolizava o limite da zona de prosperidade e liberdade do mundo ocidental. As imagens de um Europa Oriental austera, sombria, e desmoralizadora, onde a liberdade era sufocada por governos autoritários, intensificavam a divisão, mas também a simplificavam, apresentando o Bloco Oriental como uma entidade monolítica, desprovida de individualidade ou nuance cultural. Toda a Europa de Leste era caracterizada como uma espécie de prisão, com os seus habitantes ansiosos por atravessar para a "terra prometida" — o mundo ocidental.


O Muro de Berlim, como uma manifestação física da Cortina de Ferro, tornou-se um dos símbolos mais icónicos dessa divisão. A cultura visual em torno do Muro evoluiu temporalmente, com o envolvimento direto de artistas, ativistas e fotógrafos. A grafite no lado ocidental do Muro, por exemplo, transformou o concreto num símbolo de resistência e liberdade, contrastando fortemente com a fachada cinzenta e intocada voltada para Berlim Oriental. Os anúncios de publicidade ocidentais também exploraram o Muro, utilizando-o para promover não só produtos mais também os ideais ocidentais de liberdade e escolha.


A perceção cultural da Europa de Leste mudou após o final da Guerra Fria, com a ideia de que, até o final da década de 2010, de que a região tinha alinhado-se com os ideais ocidentais e estava em processo de desenvolvimento. No entanto, o recente conflito entre a Ucrânia e a Rússia trouxe novamente a tona os problemas geopolíticos da região, revivendo uma nova versão da Cortina de Ferro, que já deu e certamente dará origem a novos visuais que irão definir o século XXI.


Por outro lado, recentemente as “estéticas” do Leste Europeu pós-soviético, passaram a ser romantizadas pelas gerações mais jovens nas redes sociais, que veem artefatos do brutalismo, da moda, da música, e de paisagens pós-industriais, antes vistas como símbolos de decadência e de uma história conturbada, como algo "exótico" e "autêntico". A caracterização do Leste Europeu feita pelo Ocidente ironicamente passou a ser vista por muitos como algo intrigante, atraente, e esteticamente interessante, ainda que estas visões atualmente já não se apliquem de maneira relevante a uma grande parte dos países do Leste Europeu.


Entretanto, as novas gerações, ao revisitarem estes elementos da história pós-soviética do Leste Europeu, substituem as velhas narrativas, e ressignificam esses elementos, que muitas vezes são propositadamente ignorados ou esquecidos, quando podem servir como ponto de reflexão para os desafios sociais, políticos e económicos que ainda moldam e irão continuar a moldar o Leste Europeu.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

'Sex and the City' e a Evolução dos Relacionamentos

 


Recentemente, vi pela primeira vez a série Sex and the City. Esta série, que retrata a vida de quatro amigas na casa dos 30, solteiras e a viver em Nova Iorque nos anos 90, traz uma premissa familiar, repetida em muitas outras séries do género. No entanto, surpreendeu-me o seu tom único e a diferença marcante em relação às sitcoms típicas da época. Sex and the City é mais direta e sem censura, representando quase perfeitamente amizades sem tabus, sem receio de abordar temas desconfortáveis. Com um foco profundo nas relações amorosas e sexuais, a série levou-me a refletir sobre como essas dinâmicas evoluíram até ao presente.

Vivemos hoje num mundo em que muitos casais se conhecem online e, neste contexto, Sex and the City assemelha-se a um conto nostálgico de um passado pré-internet e até mesmo pré-telemóveis. Na série, as pessoas parecem mais sociáveis e extrovertidas, e a forma mais comum de conhecer alguém era através de eventos sociais ou de ‘arranjinhos’ feitos por amigos. A diferença é gritante: o ambiente retratado valoriza o contacto pessoal e o acaso, enquanto atualmente as mensagens por redes sociais e o hábito de pesquisar alguém online antes sequer de falarmos com a pessoa tornaram-se práticas normais. Este “novo normal” pode facilitar a identificação de interesses comuns, mas também adiciona uma carga de expectativas baseada numa quantidade de informações que a geração de Sex and the City nunca teve.

Outro contraste interessante é a comunicação dentro das relações. Em Sex and the City, as personagens dependem de conversas cara a cara e de telefonemas ocasionais, enquanto hoje a comunicação é praticamente constante, com mensagens a qualquer hora, sabendo sempre se a pessoa está online ou até a escrever-nos uma mensagem. Isso cria uma (falsa) sensação de proximidade quase contínua, mas também pode gerar mal-entendidos e ansiedade, enquanto as personagens da série lidavam com a ausência e a espera de forma mais natural. Será que essa forma de comunicação menos imediata não era, afinal, mais saudável?

Para além das diferenças óbvias nos encontros e nas formas de comunicação, uma das mudanças mais intrigantes trazidas pela internet é a criação de novos termos e categorias para descrever relacionamentos. Expressões como “situationship” e “the ick”, definem dinâmicas que, nos tempos de Sex and the City, dificilmente seriam reconhecidas. A própria ideia de “situationship” – uma relação indefinida que não é nem um compromisso sério nem meramente casual – representa uma complexidade que talvez nem fosse imaginada há algumas décadas.

Estes novos termos e conceitos podem ser úteis para identificar nuances nas relações, mas também podem trazer confusão. Com mais opções e rótulos, parece haver uma necessidade crescente de categorizar cada tipo de interação amorosa. Isso, de certa forma, banaliza as relações, retirando-lhes a espontaneidade e impondo-lhes definições que limitam sentimentos e expectativas. Hoje, existe uma vasta gama de classificações que trazem consigo diferentes pressões, como se até os relacionamentos tivessem de encaixar-se em “caixas”, ignorando o facto de que cada relação é tão única quanto cada ser humano, com as suas próprias características e acordos.

Assim, assistir a Sex and the City atualmente é como abrir uma cápsula do tempo, que nos permite observar como as relações amorosas mudaram nas últimas décadas, especialmente com a influência da tecnologia. Relembra-nos que as relações podem ser complexas, mas também livres das camadas de ambiguidade que a cultura digital adicionou. Sem complicações desnecessárias. É um retrato de uma época em que o amor e a amizade se construíam a um ritmo diferente — talvez mais demorado, mas possivelmente mais presente e espontâneo. Afinal, será que esta era digital, com toda a sua conveniência, realmente enriqueceu ou simplificou a nossa forma de nos relacionarmos?

Inteligência artificial e processamento da linguagem

Apesar da evolução ser uma constante, tem-se observado na atualidade uma exponencial transformação tecnológica. O desenvolvimento tecnológico tem tido um enorme crescimento, sendo agora muito diferenciado devido à era da inteligência artificial. A inteligência artifical (IA) encontra-se praticamente em todas as vertentes da sociedade, com um impacto cada vez maior no nosso modo de vida. Uma das ferramentas de IA mais popular é o ChatGPT, acessível a todas as pessoas, dando a oportunidade de experienciar esta revolucionária tecnologia em primeira mão, possibilitando um contacto com uma forma de IA bastante desenvolvida.

Este modelo interage automaticamente ao que lhe é solicitado ou questionado através de uma interface de texto, interpretando e contextualizando a informação. A linguagem é interpretada, manipulada e processada por sistemas que dependem da associação dos signos linguísticos de acordo com modelos matemáticos, ao contrário da linguagem humana que é efetuada de forma arbitrária e convencional. 

O processamento das palavras como sequências de símbolos não implica uma conexão intrínseca com o significado delas. O significado do signo não está no signo em si mas na convenção que atribuímos a ele, tal como defende Saussure. Da mesma forma, o ChatGPT interpreta a linguagem apenas pela probabilidade dos signos aparecerem juntos e não pela ligação direta com a realidade ou significado profundo.

O desenvolvimento e uso da IA em comunicação não reflete uma arbitrariedade e ligação histórica dos signos linguísticos, sendo estes conceitos fundamentais na linguística. A IA associa a linguagem de forma convencional, baseada em padrões de uso associados a modelos matemáticos, estatísticos e probabilisticos. No entanto, reforça que o significado das palavras não é absoluto mas sim construído pela sociedade e pelo contexto, reafirmando as ideias de Saussure sobre a natureza arbitrária dos signos.

A imigração

 A imigração é uma questão de carácter complexo, que revela tanto a procura por uma vida melhor, como os desafios e contradições da sociedade contemporânea. Quando olhamos para a imigração de forma mais profunda, esta  torna-se um espelho das desigualdades globais, dos desejos universais de segurança e bem-estar, das formas como as sociedades e culturas interagem.

Muitos imigrantes deixam os seus países de origem por necessidade. A migração forçada, incentivada por conflitos armados, perseguições políticas e crises econômicas, afetam as pessoas que procuram refúgio e dignidade em terras estrangeiras. Neste sentido, a imigração nos lembra da nossa responsabilidade coletiva e da necessidade de solidariedade e empatia, pois muitas vezes essas pessoas enfrentam situações de extrema vulnerabilidade ao chegarem a um país desconhecido.

Quando a migração é voluntária e motivada por oportunidades económicas, observamos marcas de desigualdades entre os países. Quem migra em busca de melhores condições de trabalho ou educação, revela os desequilíbrios de desenvolvimento que existem entre diferentes nações, que muitas vezes  limitam as possibilidades de realização pessoal e profissional.

Com a imigração também é possível enriquecer as sociedades de acolhimento, trazendo diversidade cultural, novos conhecimentos e perspectivas. Os imigrantes desempenham um papel vital em setores essenciais e muitas vezes ocupam postos de trabalho que os cidadãos locais não estão interessados ​​em assumir. Estes contribuem para o crescimento económico, param impostos, criam empresas e inovam nas diferentes áreas. Para estas contribuições serem completamente valorizadas, é preciso que as sociedades de acolhimento promovam políticas de inclusão e respeito aos direitos dos imigrantes, registrando-os como membros legítimos da comunidade.

Contudo a imigração, infelizmente, nem sempre é vista de forma positiva. Há muitos lugares, onde preconceitos são alimentados pela desinformação e por discursos políticos que culpabilizam os imigrantes por problemas sociais, como o desemprego e até mesmo a criminalidade. Estes estigmas e barreiras culturais políticas revelam uma grande necessidade de urgente diálogo e educação. Entender a imigração de forma ampla, contextualizada e humana ajuda a desconstruir estereótipos e a criar uma convivência.

É importante considerar que todos, nalgum momento das nossas vidas, podemos precisar de um novo começo e que as fronteiras geográficas não deveriam ser uma limitação à nossa responsabilidade e vontade de construir um mundo onde todas as pessoas tenham uma chance de mudança e recomeço mais pacíficos.

Insignificância Humana na arte

 Ao refletir sobre o tema Insignificância humana, tenho uma sensação de fragilidade e de pequenez frente ao vasto universo e a passagem do tempo ao longo da história, não me deixa indiferente. Quando olho  para a arte e para as representações visuais ao longo do tempo e vejo como os artistas têm explorado a condição humana de várias maneiras - seja celebrando a sua grandiosidade ou, paradoxalmente, destacando a pequenez humana diante da imensidão do cosmos ou da complexidade da natureza.

A insignificância humana, como tema visual, pode ser vista como uma resposta à nossa tentativa de encontrar um significado e propósito em um mundo que muitas vezes parece indiferente. As obras de arte  confortam-nos frequentemente com a ideia de que, embora nos consideremos centrais na narrativa do planeta, a realidade é que somos uma parte diminuta em um processo que ultrapassa a nossa compreensão. 

Isso é visível em muitas representações visuais da humanidade como pequenos elementos em cenários maiores. Artistas contemporâneos como Andreas Gursky e David Hockney, por exemplo, utilizam o contraste entre a escala humana e o ambiente para reforçar essa sensação de insignificância. A imensidão das paisagens, das cidades e dos sistemas urbanos nas suas fotografias criam uma atmosfera de anonimato, onde o ser humano torna-se quase invisível ou irrelevante diante tudo ao seu redor.

Outro aspecto da insignificância humana pode ser entendido ao pensar na efemeridade da nossa existência. A arte muitas vezes tenta capturar momentos fugazes, como em uma pintura de natureza-morta ou na ideia de impermanência expressa em algumas formas de arte conceptual. Nesse sentido, a arte não só reflete a transitoriedade da nossa vida, mas também lembra-nos da nossa vulnerabilidade e da constante presença do tempo.

Em suma, mesmo pequenos, temos a arte como uma forma de tornar visível a nossa luta contra o tempo e a nossa indiferença perante o universo.      

"A Metamorfose" de Kafka e o Terror da Vida Social

 

    “A Metamorfose” conta a história de um homem que um dia acorda e não é homem, é inseto. Simples assim. A história tem menos de 100 páginas, e foi publicada pela primeira vez a mais de 100 anos atrás. É, no entanto, o conto mais reconhecido de Franz Kafka, bem como um dos mais famosos no geral. Mesmo quem não o leu, sabe a sua história. Mas porquê? O que há de especial na história de um inseto? Tudo, digo eu, quando este personifica os maiores medos de qualquer indivíduo que pertença a um grupo social.

    Os temas mais claros na escrita de Kafka são o existencialismo e o surrealismo. São eles que são aclamados pelos críticos e que atraem os leitores. A história é absurda e trágica, com personagem principal em constante estado de confusão e isolamento. Qualquer um que que já tenha vivido e questionado a sua própria vida sabe o terror da existência, e percebe assim os temas da história de Gregor, a personagem principal do conto.

    Mas o que dá vida à metamorfose, o que está na origem do sofrimento da personagem principal, é a vida social. Viver em sociedade é pertencer e não pertencer a determinados grupos sociais. É julgar, analisar e criticar de forma constante a tudo e a todos. É ter um papel, e seguir a este até a morte (se não física, então social). Ser humano, pessoa, é estar-se consciente de tudo isto – e é o horror desta consciência. É temer o que aconteceria se deixássemos de seguir os nossos papéis, se deixássemos de ser aquilo que é esperado de nós. “A Metamorfose” é genial na representação deste medo.

    No entanto, Gregor é um coitado, um homem trabalhador e respeitável, a quem coisas más acontecem sem qualquer razão ou motivo – sofre pelo simples fato de viver. O leitor, tal como Gregor, tem papéis sociais ao qual deve se conformar. O leitor, tal como Gregor, teme a exclusão social, e, o leitor, tal como Gregor, sente-se isolado e perdido. Mas o leitor percebe e reconhece estes sentimentos - e para ele estes são apenas isso – sentimentos. O leitor é consciente e crítico – o leitor tem a Gregor.

    Concluo que “A Metamorfose” é uma das mais clássicas e melhores representações do terror da consciência, do pânico que uma falta de significado nos causa, e, principalmente, do papel da sociedade na forma como nós vemos a nós próprios. É uma excelente leitura e ponto de partida para discussões mais profundas sobre o assunto.


Arriscar pelo prazer

É cada vez mais comum utilizar-se ‘dating apps’ para se conhecer alguém. 

É um caminho mais fácil, mas será que é considerado batota? Ou até mesmo mais seguro?


A verdade é que a margem de erro diminui, porque há logo um conjunto de parâmetros que é possível ajustar aos gostos de cada um e dentro do que cada pessoa considera ser importante ou não numa curta ou longa relação.


Mas com isto surgem outros perigos, e o documentário ‘The Lie: The Murder of Grace Millane’ é um dos milhares de exemplos. 


O documentário retrata um ‘tinder date’, de uma jovem viajante na Nova Zelândia, com um jovem local: foram jantar, beber um copo e acabaram a noite no quarto de hotel. 


Vi este documentário no ‘MotelX’, o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, e saí da sessão sem palavras, num ambiente pesado e doloroso. 

Todos naquela sala sentimos que podia ter sido connosco. Seja do lado da mulher por já terem cometido todos os passos iguais à jovem Grace, ou até mesmo do lado do homem, por saberem que já houve mulheres a estarem naquela situação consigo e obviamente não cometeram o crime. Mas o facto de “o plano ideal” ser cada vez mais possível, é angustiante. Até porque eu sei que não o faria, mas não posso confiar que todos os homens também não. 


Claro que a probabilidade destes crimes acontecerem é baixa. Mas haver um caso, já é um caso a mais do que o suposto.


Mas impõe-se a questão: Teremos que deixar de arriscar e de viver a vida? Será que a culpa é das ‘datings apps’? Com toda a certeza que estes crimes já aconteciam, quando se conhecia alguém num café, bar ou até mesmo na rua. A verdade é que todo o cuidado é pouco, mas o medo nunca deveria ser o preço da nossa liberdade.

Estamos numa era onde a conexão é fácil e instantânea, mas onde a confiança se esvai numa linha ténue entre o desejo e o risco. Será que estamos a tornar-nos demasiado dependentes de filtros e critérios para definir quem vale o nosso tempo, esquecendo que o verdadeiro perigo, por vezes, reside na nossa própria vulnerabilidade e nas escolhas que fazemos?

Talvez o segredo não esteja em evitar arriscar, mas em fazê-lo com olhos bem abertos. Porque no final de contas, cada encontro é uma aposta, e a vida continua a ser sobre o risco da proteção, mas também sobre a beleza de dar certo.

A descartabilidade e efemeridade atual

        

    As pessoas vivem a correr. Procuramos cada vez mais, formas práticas e acessíveis para nos ajudar a passar os dias. Uma refeição rápida, transporte que não demore muito, compras que vão ter à porta de casa, cinema no sofá — e tudo isto da forma mais barata possível. A praticidade e a acessibilidade, dominam várias áreas e aspectos na nossa vida quotidiana. No entanto, considero que chegámos ao extremo. 

   No âmbito da moda, as pessoas ultimamente têm recorrido a comprar roupa sem qualidade, com pouca durabilidade e muito barata. Isto é normalizado pela sociedade, a meu ver, parcialmente pelo facto da internet todas as semanas lançar novas tendências e novas modas. As pessoas têm a necessidade de se adaptar e de obter o que nos é imposto, mesmo sem a preocupação do ambiente de trabalho de quem produz essas peças. Como estas microtendências não duram muito tempo, a roupa também não tem que durar, e por esta razão, as pessoas não querem, nem sentem necessidade de investir em algo com qualidade e que seja mais dispendioso. Isto gera um ciclo de consumo rápido e descartável, onde o efémero é normalizado e o desperdício, ignorado. 

    A internet tem um papel substancial nesta efemeridade atual, não só pela influência contínua de tendências mas também pelo tipo de conteúdo que os algoritmos valorizam e nos apresentam. As redes sociais valorizam vídeos de curta duração com informação irrelevante, desnecessária e muitas vezes errada. Aplicações como o TikTok, que estão no telemóvel de milhões de pessoas, consistem em conteúdos de curto formato, que moldam os utilizadores a consumirem entretenimento rápido, que não impliquem em qualquer tipo de questionamento e pensamento crítico. 

    Com o avanço da tecnologia e a pressão social que as pessoas acabam por sofrer, este fenómeno da descartabilidade de conteúdos atinge também outros meios, e continuamos neste ciclo de efemeridade e consumo rápido e descartável. Questiono-me se futuramente este problema se irá manter, piorar ou até quem sabe, acabar. Possivelmente as pessoas começam a perceber o impacto negativo deste comportamento e procuram formas mais conscientes e duradouras para viver. Até quando vamos normalizar o efémero?




A exposição desmedida de menores como maquinaria de enriquecimento

Ao longo da vida vamos colocando questões a nós próprios e, deste modo, construímos e sedimentamos os valores pelos quais nos iremos reger. Ao ler o texto de Roland Barthes ,“Bichon entre os Pretos”, o aspeto que mais me chamou à atenção foi o ‘heroísmo sem objeto’. A história de uma criança colocada numa situação desnecessária, não ganhando nada com isso, que tão pouco tinha a noção daquilo que lhe estava a acontecer. No final de contas, quem acabou por ser reconhecido e ter algum benefício com esta história, foram os pais que se colocaram, e por consequência colocaram a criança, naquela aventura.

Com base neste texto de Barthes, criei uma ponte para um tema atual e que me incomoda de certa maneira. Recolhi também algumas informações e fiz uma pesquisa por várias notícias que abordam o tema.

Numa época onde tudo está à distância de um clique, há muitas perguntas e valores éticos a serem discutidos. Fazer parte da Gen Z é estar ciente e alerta de todos os pros e contras de uma exposição quase total de todos nós nas redes sociais. Nunca estivemos tão conectados às redes, nunca tivemos tanta informação e nunca foi tão fácil dar uso aos meios, para o bom e para o mal também. Com o uso das redes sociais e numa época onde nos deparamos com tudo online, desde vidas fictícias, ao grande mercado, a notícias, entre outros, tudo virou comum para os olhos dos demais. Todos nós seguimos ou acompanhamos alguém que vive e se alimenta da internet, os intitulados “influencers”. São pessoas ditos comuns, vivem a suas vidas normalmente, mas o que lhes dá esse nome é a partilha dos seus dias nas redes socias. Pode partir de algo banal, como um passeio ou uma caminhada com o cão, para vivências partilhadas, até chegar ao ramo da indústria, onde tudo é forma de ganhar dinheiro. Tudo conta, desde visualizações, comentários, parcerias, eventos e por aí adiante. A internet é a maquinaria pesada de fazer dinheiro, completamente movida por nós, espectadores, que alimentamos a nossa vida com base naquilo que vemos e que, de certa forma, tentamos viver.

Algo que cada vez mais se vê é o aparecimento de bebés e crianças nas redes sociais. Por vezes começa com os pais a partilharem a gravidez, que passa para o nascimento, em que a certo ponto estamos a ver parcerias com marcas de fraldas e chupetas, até aos primeiros passos e palavras da criança. Quem é a pessoa que resiste a um amável bebé? Sem dúvida nenhuma que o engajamento é superior a qualquer outro tipo de partilha. O espectador pode estar apenas curioso, pode sentir alguma empatia, ficar apenas feliz como também não sabemos se pode ter algum tipo de malícia. Nunca sabemos quem está por de trás do ecrã e logo aí levantam-se muitas questões. Será eticamente correto expor uma criança num meio público, criança essa que não pode dar o seu consentimento, em troca de gostos e de monetizações? Qual é o limite que separa aquilo que pode ou não ser partilhado nas redes por parte dos pais sem meter em causa terceiros? Claro que irá sempre existir um lado positivo da história. Um bom exemplo disso seria de alguém que está a passar pelas mesmas situações, que poderá assim sentir-se menos sozinho e aceder a mais informações. Não obstante a isso, como é que sabemos que aquilo que está no ecrã não é uma romantização da monotonia do dia a dia?  

Quando nós adultos partilhamos a nossa imagem, temos a noção do nosso corpo como nossa propriedade e damos sim o consentimento de partilha, mas os mais pequenos não o podem fazer. Não é implícito que esta ação seja feita com maldade, mas quando olhamos a fundo para a questão, nada é assim tão simples como “é apenas uma publicação”. Perguntemo-nos como se sentirá uma criança com uns três anos que está na rua e é reconhecida por gente que nunca viu antes? Pessoas essas que sabem o seu nome, informações sobre o seu quotidiano, histórias de vida e afins. No mínimo diria que se sentiria confusa.

Conclui-se assim que em ambas as situações, na atualidade e no texto de Bichon, embora o elemento centralizado seja a da criança, essa nunca será a principal beneficiária de toda essa atenção. Há muito de atual nesta história, permanecendo assim a ideia de Barthes “As proezas de Bichon são do mesmo tipo das ascensões espetaculares: demonstrações de natureza ética, que só retiram o seu valor da publicidade que lhes é dada”.

O mundo com AI

O tópico em discussão é a influência da inteligência artificial na nossa sociedade. Acredito que desde ja mas principalmente em pouco tempo, a inteligência artificial terá um papel central na sociedade, influenciando desde tarefas cotidianas até grandes avanços científicos e culturais. 

Como por exemplo, ja podemos ver em nossas casas, assistentes virtuais como a "Alexa" estarão mais integrados, prevendo e atendendo necessidades acima de apenas ligar e desligar luzes e iniciar músicas, tornando o ambiente doméstico cada vez mais autônomo.

Nos transportes, veículos autônomos serão comuns, mudando completamente a forma como nos deslocamos e impactando cidades e infraestrutura urbana. 

Com a presença constante da IA, muitas rotinas se tornarão mais seguras e eficientes, mas a sociedade também enfrentará dilemas éticos sobre privacidade, liberdade e controle das tecnologias.

Alem de mudanças no nosso cotidiano tradicional acredito que o mundo visual sentira muito com sua presença.Por exemplo no desenvolvimento da ficção científica, a inteligência artificial não só será um tema constante, como também uma ferramenta fundamental para criação, criando novos trabalhos e carreiras. Filmes, séries e games aproveitarão IA para desenvolver narrativas dinâmicas e interativas, adaptando-se às preferências do público em tempo real. Os roteiros de ficção científica terão personagens e cenários que representam a própria inteligência artificial, explorando as fronteiras entre humanos e máquinas. Dessa forma, o gênero de ficção científica não só apresentará visões de futuro, mas será co-criado com as próprias tecnologias que representa, desafiando o público a refletir sobre sua relação com a IA.

Além disso, o avanço da IA transformará a criação artística. Artistas e designers visuais trabalharão em colaboração com algoritmos que lhes permitirão explorar novos estilos e perspectivas, reinventando conceitos estéticos e desafiando as fronteiras da autoria. No mundo da cultura visual, obras interativas e adaptativas surgirão com base em preferências individuais, tornando cada experiência única. Em 2034 por exemplo, a inteligência artificial será uma ponte poderosa entre a ficção científica e a realidade, moldando tanto a nossa visão de mundo quanto as possibilidades culturais, e tornando cada vez mais tênue a linha entre criação humana e inovação tecnológica.

Teremos dificuldade de distinguir o que foi criado somente pelo humano e o que teve influencia ou algum papel do AI, mesclando assim nossa sociedade humana com o mundo da inteligência artificial, criando quem sabe uma nova sociedade.

Metaverso vs Realidade (Um “ser” presente?)

De acordo com Descartes, o corpo é suficientemente definido como algo extenso em três dimensões: comprimento, largura e altura. A partir desta teoria sugiro que pensemos um pouco sobre a realidade virtual e o que nos permite, ou não permite, relacionar com o nosso ”ser”. A limitação do nosso corpo e alma reflete uma realidade que foi posta em causa a partir do momento que começou o conceito do metaverso. O metaverso e a realidade virtual criam um espaço digital onde as pessoas podem interagir num ambiente tridimensional e imersivo, fora da vida real. Fica a questão do que realmente define um corpo…

Agora deixando Descartes, focando mais no “ser”, podemos admitir que a partir do Sistema de Signos de Saussure, no Metaverso, a linguagem adquire novos significantes e significados, deixando a dúvida do que será o conceito de “realidade” e “identidade”. Temos uma personagem ou avatar de um indivíduo que se torna um signo e representa o seu “eu digital” e portanto a relação entre significante e significado torna-se fluida. Como exemplo, uma pessoa tem a possibilidade de escolher um avatar que represente algo totalmente diferente e atópico da sua realidade no mundo físico, criando uma desconexão entre a identidade real e virtual. A alteração atópica confere num jogo de signos que transforma o próprio conceito de “ser” e a sua perceção de identidade, presença e corpo. 

Partindo do conceito de corpo e da visão racional limitadora de um “ser”, agora apelo à relação entre um corpo definido como algo extenso em três dimensões e o jogo de signos refletido anteriormente. A capacidade de fugir do seu corpo e modificá-lo remete a uma das capacidades do Metaverso. 

Para concluir, o Metaverso e a realidade virtual representam um novo espaço que desafia as fronteiras entre a realidade, a simulação e a identidade. É um campo onde a linguagem e a idealização do corpo interagem numa complexa rede de significados, criando uma nova camada de realidade que está em constante questionamento. 


O Mundo Simbólico de Matrix (1999)

 Uma forma de se imaginar o nosso mundo é através de uma linha generalizada (Saussure, Ferdinand de, Curso de Linguística Geral) que, por sua vez, pode ser divida em dois a partir da abstração, ou seja, o mundo em que vivemos pode ser analisado por completo, porém somente se nos afastarmos dele, de modo que assim seja possível perceber que nele existe uma ruptura linear entre o Mundo Simbólico e o Mundo Real. O Mundo Simbólico pertence ao mundo da linguagem, aquilo que colocamos significados, enquanto que o Mundo Real pertence ao natural, e portanto aquilo que foi dado um significado, mas que, no entanto, já existia antes da linguagem. 

O filme Matrix de 1999, apresenta um claro exemplo dessa filosofia.

O personagem principal Thomas Anderson, interpretado por Keanu Reeves, no início da trama, é dado duas opções: permanecer alheio à verdade do seu mundo, ou descobrir o que estava por trás do “véu”. Anderson escolhe a segunda opção (pois se não não haveria mais história para continuar o filme) e, por conta disso, acorda de um sono profundo e se vê literalmente fora do próprio mundo, podendo literalmente abstrair da sua realidade para, simultaneamente, analisá-la. 

Esse personagem, junto de seus companheiros, então se tornam os únicos seres humanos a analisarem o mundo em que vivem de forma totalmente “pura”, em outras palavras, conseguem visualizar os dois mundos lineares de Saussure sem a distorção causada pela proximidade dessa realidade em questão. Pois para Saussure a única forma possível de realmente perceber o mundo a nossa volta, seria de analisar esse mundo de forma afastada, em terceira pessoa, objetivo que só pode ser comprido em totalidade através do exemplo do Matrix, em que os personagens literalmente saem da própria realidade, para analisá-la de forma inteiramente externa. 


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A Passagem

A impossibilidade de ver e num pestanejar, o Nascimento do Sol Nascente. Um pós-lugar e o deslumbramento pelo vazio. Fenda rasgada no espaço. Aqui estou. Num caleidoscópio escuro e paredes que se revelam pela iluminação do cinema. Templo de luz e a naturalidade pela falsa verdade que atormenta a respiração – pouco assídua. A luz da auréola azul que resplandece dos vulcões da lua. Analiso um negativo e a tua calma no andar que permanece intacta. Cântico falante, como ficas bem. Realidade enviesada e ao longe o terno canto de um rouxinol. A paisagem pura, nua, e a descida do véu que lentamente revela a imagem onde te deitas e eu não sei o que fazer. Afasto-me no desvendar de uma neblina que ofusca o invisível que está em ti e todas as contradições que se alojam em mim. Tento afastar a estranheza que insiste em calcificar-se na palma das minhas mãos tocando em tudo o que seja vivo e quente e, a distância entre estes mundos é tanta que vejo a extensão do meu gesto desvanecer-se sobre cada rotação feita, pela luz do grande farol. E a tua memória, que se camufla facilmente no interior de cada badalada, oca, e a lembrança de um sonho lindo. Destruo as barreiras da crítica e deixo-te entrar. Atenção reduzida e não sei onde estás. Onde estás. Um barulho ensurdecedor metálico e o ranger dos teus dentes. O mistério que te protegia era agora escrito em palavras, sons, tribulações que ecoam do teu sono profundo. Neblina agora contida e do teu espírito a separação de cada partícula. A linearidade dos astros que se iluminam sobre o teu peito e tudo o que nos afasta. Distância permanente e não consigo fugir dela. O vazio do teu cheiro e um grande lago, cume rompante no seu centro e a divisão que se formou pela força do estrondo. Fissura aberta ao céu — a fenda, e o grão que ficou da tua voz. Deparo-me com o lacrimejar de uma árvore que se desfolha em eterno movimento. As suas raízes — e o medo do espanto. O meu questionamento assombra-se como o crescendo de uma orquestra, mas o lago permanece imóvel. Nada cai do céu e a minha vontade esgota-se, desfaz-me. O fotograma repete-se e os teus passos, que afinal são os mesmos que os meus, ficaram marcados sobre a cor da terra que implora por água. Uma linha diagonal e o tremendo colosso que aguardava silenciosamente. Nunca me pertenceu, este grito, este gosto, esta língua. A grande queda e a permanente paisagem imaculada. A fenda, a escorrer, a implorar, parece dividir o ar que a delimita, sufoca-a, e a sua expansão parece reduzir-se cada vez mais ao seu centro, que é também o seu princípio e assim, também o seu fim. O movimento é contínuo e ritmado e cada suspiro parece o primeiro. Estou a ver — abri os olhos. Pela primeira vez, neste espaço. O sufoco do ar puro. E a tua imagem. Que bela. Como o vislumbre de um enxame. O cheiro — que cheiro é este? Familiar odor desabrochante e a saliva dos meus lábios. Uma luz emerge, forte, confiante, um grande clarão. Um rasgo no céu e cada astro está agora revelado. Imagem cega cega cega. Surge pulsante e recordo-me. Clarão. A grande rocha filha do grande lago, pequena ilha que te esconde e és tão grande. Cheia de si, não te pertenço, nem a mim. Sou poeira que se esconde e multiplica. O manto que te cobre e o desenho do infinito que carregas ao peito. O que é isto? Toco-te. E nesse momento o meu dedo trespassa a tua realidade e deixo de ver, a cegueira, és tu és, a cegueira que te esconde. Ambiente contaminado e o meu reflexo em cada parede do teu interior, um poço. O escuro, tão escuro que deixei de te ver. Vórtice contagiante, a minha cabeça. Tacteio e a rugosidade das paredes expulsa-me cantarolando. A fenda, agora aberta, e a memória do assobio constante de um pássaro ao longe. 

O nascimento — nasci, e este acidente continuamente belo.